A rápida evolução das plataformas de desenvolvimento guiadas por inteligência artificial está provocando uma mudança estrutural no mercado de tecnologia. Ferramentas como Lovable, Framer AI, Replit AI e Builder.io vêm reduzindo drasticamente a distância entre idealizar um produto digital e colocá-lo em funcionamento, deslocando para o centro do processo profissionais que tradicionalmente não eram considerados técnicos: os designers e os product managers (PMs). Esse movimento, que começou de forma tímida em 2023, agora ganha escala global e já provoca reações dentro das equipes de engenharia.

Segundo especialistas da indústria, a chave dessa transformação é a capacidade dessas plataformas de traduzir instruções em linguagem natural diretamente em código funcional. Em vez de depender de longos ciclos de produção envolvendo desenvolvedores, designers e PMs passaram a iterar sozinhos sobre interfaces, fluxos de navegação, lógica básica e até integrações com APIs externas. “A barreira técnica caiu”, afirma um dos executivos ouvidos pela reportagem. “Hoje, quem entende o problema do usuário consegue construir a solução.”

Essa mudança tem efeitos diretos na dinâmica interna das empresas de tecnologia. Startups em fase inicial estão reduzindo o tamanho das equipes de desenvolvimento e lançando produtos com maior velocidade, enquanto organizações maiores já começam a revisar a distribuição de responsabilidades entre times. Em alguns casos, PMs e designers têm liderado a criação de MVPs completos sem envolver programadores nas etapas iniciais. “É um processo de autonomia sem precedentes”, explica um pesquisador de inovação digital. “Há um deslocamento claro de poder para áreas antes vistas como periféricas do ponto de vista técnico.”

O avanço dessas plataformas, no entanto, não significa o desaparecimento dos desenvolvedores. Profissionais de engenharia continuam essenciais em áreas como arquitetura de sistemas, segurança, performance e manutenção em larga escala. A diferença é que, cada vez mais, o trabalho especializado se concentra em decisões estruturais, enquanto a execução tradicionalmente a parte mais volumosa passa para modelos de IA. “O desenvolvedor deixa de ser executor e se torna um curador técnico”, observa um diretor de tecnologia ouvido pela IstoÉ. “Ele valida, ajusta e dá segurança ao que a IA e os times de produto produzem.”

Empresas que já incorporaram essa tecnologia relatam ganhos significativos em velocidade, custo e capacidade de experimentação. MVPs que levavam semanas estão sendo entregues em dias, e modificações estruturais em produtos podem ser feitas em horas. Esse ritmo acelerado tem atraído principalmente designers, cujo repertório visual e fluência em jornadas do usuário combinam naturalmente com os sistemas de IA generativa. “É como se o design finalmente tivesse acesso às ferramentas que sempre imaginou”, comenta um líder de UX de uma grande companhia de software. “A IA entende intenção, e isso é exatamente o que o design trabalha.”

Ainda assim, nem todos enxergam esse movimento como substitutivo. Para alguns líderes, a mudança exige cautela. “Foi o que pensei no início, mas a prática revelou que as IAs ainda têm limitações e riscos, principalmente na manutenção contínua dos sistemas. Afirmo que aceleram muito bem os processos, mas não permitem a substituição do profissional competente”, pondera Fabiano Santos Figueiredo, CEO do Comoequetalá, hub de soluções de marketing, comunicação e tecnologia para negócios. Para ele, a expansão das IAs exige uma engenharia ainda mais preparada para lidar com integrações complexas, governança e correções profundas áreas onde modelos generativos ainda não apresentam maturidade robusta.

Para analistas de mercado, o efeito mais profundo dessa transformação será cultural. O centro de gravidade do desenvolvimento de software tende a migrar da engenharia para o produto, e as decisões passarão a depender mais de quem compreende comportamento humano do que de quem domina linguagens complexas de programação. A habilidade crítica, daqui para frente, não será escrever código, mas formular problemas de forma clara o suficiente para que a IA os transforme em soluções. “É um novo tipo de alfabetização tecnológica”, resume um especialista em transformação digital. “Saber pedir se torna tão importante quanto saber fazer.”

Embora o ritmo dessa transição varie entre setores, a tendência é considerada irreversível. A combinação de autonomia de criação, velocidade operacional e redução de custos cria um incentivo estrutural para que empresas repensem a composição dos seus times. Designers e PMs, antes restritos ao planejamento, agora ocupam um espaço que lhes permite construir, testar, lançar e iterar muitas vezes sem mediação. Para o mercado, isso representa não apenas um ganho de eficiência, mas uma reconfiguração das fronteiras de quem realmente “desenvolve” tecnologia.

“O processo antes de Lovable e Vibe Coding acontecia assim: os clientes tinham uma demanda, essa demanda passava pro time de produto, que escrevia e passava pro designer, que desenhava a tela e passava pros devs, que codavam. E isso demorava meses. Agora, o processo acontece de forma muito mais rápida: o cliente tem uma demanda, o PM, junto com o designer, constrói o produto desejado pelo cliente, e envia para ele testar e validar. Após a validação, o código do produto já é entregue direto para o desenvolvedor, cujo principal objetivo passará a ser integrar na arquitetura legada, e não mais desenvolver os projetos do começo ao fim. Isso irá acelerar em dezenas de vezes o tempo de lançamento de novos produtos, serviços e features”, afirma Alexandre Messina, Enterprise GTM da Lovable.

Endrikison “Endri”, fundador da Super Pagamentos, reforça que o diferencial competitivo migra para a capacidade de encantamento. “Designers estão sempre pensando em produto, experiência, CS, CX. Como um desenvolvedor que só pensa na arquitetura compete com isso? Enquanto alguns estão lançando protótipos crus, designers de produto já lançam projetos com identidade visual coerente, landing pages de tirar o fôlego, produto com alto market fit e retenção absurda. O que acontece é que código está virando commodity. Visão é o que faz diferença.”

A redistribuição de funções já é percebida dentro das equipes. Para Yuri Alves, Senior Product Designer da Universal Destinations & Experiences, “a IA generativa e o low-code mudaram a regra do jogo. Designers montam telas funcionais, PMs validam MVPs sozinhos e muito do código simples está automatizado. Isso não ameaça a engenharia, ameaça o desenvolvedor que não evoluiu. No futuro, não vence quem digita mais linhas  vence quem pensa melhor.”