23/01/2015 - 20:00
Coloque-se no lugar de Deus. Diz a Bíblia, em suas primeiras linhas, que Ele planejou e executou toda a criação em sete dias – e ainda sobrou tempo para descansar. Separou terra e água. Fez o dia e a noite. Criou espécies de animais. Fez o homem e a mulher. Uma gigantesca engenhosidade. Tudo bem elaborado, com projeto detalhado e, provavelmente, planilha de custos. Nada improvisado. Pois bem, eis que alguns milhares (ou milhões) de anos depois, um povo chamado brasileiro decide reivindicar para si a nacionalidade do Todo-Poderoso, atribuindo-lhe a paternidade de uma terra abençoada e bonita por natureza e, ao mesmo tempo, as mazelas de uma sociedade desorganizada, culturalmente oportunista e malandra.
Para o bem ou para o mal, tudo é culpa de Deus. Uma série de acontecimentos recentes, no entanto, nos leva a concluir que ser compatriota do Pai Supremo tem mais atrapalhado do que ajudado. Isso porque, se falta água, a responsabilidade é dos céus. Acaba a luz, e quem responde por isso é o calor. A escassez de dinheiro para a Educação, resultado da queda na cotação do petróleo, é falta de sorte. A alta da inflação é culpa das chuvas intensas no Norte do País, da estiagem no Sudeste, dos ventos no Sul, da brisa gelada na Cochinchina. Tudo, enfim, responsabilidade de alguém lá em cima. Aqui embaixo, somos apenas vítimas inocentes.
Não bastasse a blasfêmia, sobra incoerência. Para o governador paulista Geraldo Alckmin, que jurou de pé junto durante as eleições que não faltaria água em São Paulo, hoje não existe racionamento. Há uma redução técnica da pressão hidráulica na tubulação que gera uma insuficiência em regiões elevadas. Traduzindo o tucanês: racionamento. Lá no coração do poder federal, a presidenta Dilma Rousseff, por sua vez, insiste na tese de que a deterioração do cenário macroeconômico é um fato pontual e fora do alcance, que o Brasil não está mergulhado num surto duradouro de corrupção e que a coisa ficou preta por aqui em decorrência da crise internacional.
Enquanto isso, tarifas públicas disparam, os juros sobem e a inflação continua nas alturas. Diante da ameaça de racionamento energético, anunciada pelo apagão da segunda feira 19, o governo decidiu oficializar o pedido de intervenção do Senhor. No dia seguinte, o ministro de Minas e Energia, Eduardo Braga, disse que espera um milagre para que as represas recuperem os níveis de anos atrás. “Deus é brasileiro e vai fazer chover e aliviar a situação dos reservatórios de água no Sudeste.” Na semana passada, minha casa ficou às escuras por mais de 48 horas, em períodos intercalados.
Durante dois dias, faltou água nas torneiras e no chuveiro. Por e-mail, recebi um comunicado do banco dizendo que os juros dos financiamentos, a tarifa e manutenção da conta e os impostos sobre as operações financeiras foram reajustados. Ao abastecer o carro, no posto de sempre, percebi que o combustível está mais caro, embora a volta da tal Cide, que encarecerá em R$ 0,22 o litro da gasolina, só passe a valer a partir de fevereiro. Para complicar, as compras do mês estão cada vez mais pesadas no bolso.
O grande problema é que, em geral, existe um sentimento generalizado de terceirização de responsabilidades entre nós, baseado na crença de que no final, “se Deus quiser” (e Ele vai querer, sem dúvida alguma), tudo dará certo. Pode apostar. Sem planejamento, não dá. A água em São Paulo vai acabar. Cada vez com mais frequência, no meio da tarde, a luz vai apagar. Comprar, o que for, estará mais caro. Ser brasileiro ficará mais difícil. A culpa é Dele? Se Deus é realmente brasileiro, está tentando nos ensinar algo.