PABLO PICASSO AINDA CONTINUA causando impressões. Só que desta vez não exatamente por sua arte, mas por seu valor financeiro. Duas telas do pintor espanhol, Boy Leading a Horse (1906) e Le Moulin de la Galette (1900), hoje expostas nos museus nova-iorquinos MoMA e Guggenheim, respectivamente, são motivo de discórdia em um processo que ainda promete gerar muita polêmica. Em 1933, quando os nazistas ganhavam força na Alemanha, Paul von Mendelssohn-Bartholdy, um banqueiro alemão de origem judaica e colecionador de arte, pressentiu o pior e decidiu enviar suas telas, entre elas Boy Leading a Horse e Le Moulin de la Galette, a um colecionador conhecido chamado Justin Tannhauser, que se encontrava na Suíça. Nunca mais Mendelssohn os veria novamente. Mas os herdeiros de Mendelssohn-Bartholdy podem não apenas revê-los como reavê-los. Eles exigem a devolução das obras que um dia pertenceram à sua família e entraram na Justiça para que isso se torne realidade. Julius Schoeps, sobrinho-neto do banqueiro e porta-voz de 26 membros da família, argumenta que, caso não tivesse acontecido o levante nazista, a obra ainda estaria em posse da família Mendelssohn. Os museus se defendem alegando que a tela Le Moulin de la Galette foi doada pelo próprio Tannhauser e a tela Boy Leading a Horse por William Paley, fundador da rede CBS, em trâmites perfeitamente legais. ?Paul von Mendelssohn nunca vendeu nada até os nazistas ascenderem ao poder?, disse à DINHEIRO, John Byrne, o advogado da família. O que torna essa pendenga judicial ainda mais instigante são as cifras em disputa. Estima-se que cada quadro valha US$ 200 milhões.

Essa não é a primeira vez que museus são colocados contra a parede. Nos últimos anos, herdeiros de famílias roubadas pelos nazistas buscaram seus direitos na Justiça e reouveram obras valiosíssimas (ver box ao lado). Os museus MoMA e o Guggenheim não se pronunciaram sobre o assunto. Mas a reportagem da revista DINHEIRO teve acesso aos arquivos do processo que corre na Corte de Justiça de Nova York. Consta que o Boy Leading a Horse foi doado ao MoMA, em 1964, pelo também colecionador William Paley, um imigrante judeuucraniano que era o então presidente da instituição. Já o Le Moulin de La Galette foi doado ao Guggenheim pelo próprio Tannhauser, em 1963, e tornou-se propriedade absoluta do museu em 1976, na ocasião da morte do mecenas. Por trás dessa história há uma série de indagações. Por que Mendelssohn repassou os quadros para Tannhauser? O que houve com as telas no meio do caminho? O que eles combinaram na época? É difícil encontrar a resposta exata, mas dá para seguir o rastro deixado pelos dois. O banqueiro Paul von Mendelssohn começou sua coleção de arte a pedido de sua primeira mulher, também judia, Charlotte. Ela era amiga do colecionador Alfred Flechtheim, que incentivou o casal a comprar arte. Os dois se separaram e o banqueiro se casou mais uma vez, dessa vez com a não-judia Else von Lavergne-Peguilhen. O gosto pela arte permaneceu, mas a vida do banqueiro começou a ficar difícil na medida em que o nazismo crescia.

Em 1933, Mendelssohn foi retirado da Associação Nacional de Banqueiros e, ao ser impedido de trabalhar, seus bens foram diminuindo. Ele então começou a enviar sua coleção para fora do país com a ajuda de seu amigo Alfred Flechtheim. No mesmo ano, as obras foram transferidas para a Associação Artística de Basel, na Suíça, a cargo de Tannhauser ? este apresentado por Flechtheim. Reside aí o mistério. O advogado da família, John Byrne, reconhece que a obra foi posta em consignação, mas não há nenhum registro de que tenha sido vendida. Ao mover o processo, o desejo dos herdeiros é que todas as vendas, desde a época em que eles possuíam os quadros até hoje, sejam desfeitas. ?A família pretende anular todas as vendas e doações pelas quais os quadros passaram ao longo de todo esse tempo. Existe até um respaldo legal, mas antes ele precisa provar que houve coerção?, explica Pedro Szajnferber Carneiro, advogado especializado em propriedade intelectual. ?Além disso, há de se considerar que nos museus as obras expostas possuem uma grande função social. Será que seria assim se voltassem aos herdeiros de Mendelssohn??, completa Carneiro.

OBRAS PILHADAS
Os outros casos que movimentaram o mercado de arte nos últimos anos
* No ano 2000, a National Gallery de Washington devolveu um óleo sobre tela, pintado no século 17 pelo belga Frans Snyders, à família Stern. A obra havia sido roubada pelos nazistas, em 1941, em Paris.

* O retrato de Adele Bloch-Bauer I (foto acima), do austríaco Gustav Klimt, é um dos casos mais famosos. Tomada pelos nazistas, a obra foi devolvida à Maria Altman, única herdeira da família, e depois comprada por Ronald Lauder, dono da Estée Lauder, pelo preço recorde de US$ 135 milhões.

* O Museu Leopold, na Áustria, está em processo de devolver o quadro Haueser am Meer, do expressionista Egon Schiele. O quadro, avaliado em US$ 15 milhões, foi roubado pelo exército nazista, em 1938, e está sendo reivindicado por uma família britânica.

* A National Gallery do Canadá já admitiu que mais de 100 obras de seu acervo podem ser resultado de pilhagens ocorridas durante o Holocausto. A instituição, entretanto, afirma que tem dificuldade em documentar suas obras no período que vai de 1933 a 1945.

* Em julho deste ano, os herdeiros da condessa polonesa Isabella Dzialynska conseguiram reaver três medalhões do século 4 d.C. que haviam sido roubadas pelos nazistas. Nos últimos anos, quem diria, as peças estiveram com o Museu de Israel, em Jerusalém.