22/02/2006 - 7:00
“Jorginho Guinle acreditava que um patrimônio familiar não acaba. Não é verdade”
“A visibilidade de Milu Vilela não é necessariamente vinculada ao Itaú, mas agrega valor”
DINHEIRO ? Seu livro destaca que 67% das empresas familiares não passam da segunda geração. Por quê?
RENATO BERNHOEFT ? A família é muito idealizada, porque nasce de uma relação afetiva. Mas se você pega uma família e bota uma empresa em cima, cria-se uma organização dividida entre sócios que não tiveram liberdade de escolha. O fundador da Bombril (Roberto Sampaio Ferreira) escrevia cartas para os filhos. Em uma delas, ele diz: ?Vocês não vão ser donos. Vão ser sócios. Quem tem sócio tem patrão; tem que dar satisfação.? O fundador é patriarca, dono e gestor da empresa. Mas este modelo, da segunda geração em diante, não serve mais.
DINHEIRO ? O sr. fala em criar famílias empresárias. O que significa isso?
BERNHOEFT ? Uma família empresária não é uma família comum. Quem tem empresa tem compromisso com a comunidade. Se eu pertenço a uma empresa, não posso aprontar. Quantas famílias ficaram decadentes por isso? Um herdeiro virava playboy e comprometia a imagem da empresa. Se você examinar a maioria dos casos das empresas familiares que desapareceram no Brasil, vai encontrar um conflito familiar no processo. (O grupo) Matarazzo foi um exemplo típico. A Bombril passou por um processo semelhante. Muitas dessas empresas continuam aí. O problema não era o negócio, era a família. O melhor negócio do mundo não resiste a uma briga de família.
DINHEIRO ? Que lição se tira da história de Jorginho Guinle (herdeiro da família que construiu o Copacabana Palace)?
BERNHOEFT ? O caso do Jorginho Guinle é emblemático. Ele fez uma opção por tornar-se um playboy, partindo do pressuposto de que o dinheiro não acaba. E isso não é verdade. Se cada geração não agregar valor ao patrimônio, o patrimônio acaba. No fim da vida, ele teve que ser ajudado pelos amigos.
DINHEIRO ? Um dado de seu livro mostra, que de cada 100 fortunas brasileiras, só 18 foram herdadas. Por quê?
BERNHOEFT ? Na maioria dos casos, as fortunas familiares se perdem por disputas de poder. Dinheiro não agüenta desaforo de parente. Somos um país de burguesia decadente. Por termos uma história de economia fechada e um modelo empresarial que foi muito estimulado por incentivos fiscais, as pessoas que tinham empresas se acomodaram. Tinham uma visão muito patrimonialista.
DINHEIRO ? Patrimonialista em que sentido?
BERNHOEFT ? No sentido de que ter patrimônio era suficiente. São pessoas que tinham muito patrimônio, tanto imobiliário na cidade, como fazendas, que não gerava lucro. Mas como havia a inflação, o lucro financeiro cobria isso. Também é uma burguesia decadente porque, em muitos casos, não educava os filhos para o mundo do trabalho, para que entendessem que precisavam agregar valor ao patrimônio. Educava só para desfrutar do patrimônio.
DINHEIRO ? É verdade que fundadores são pão-duros e herdeiros, perdulários?
BERNHOEFT ? No Brasil, a primeira geração de empresários em geral é formada por imigrantes ou filhos de imigrantes que se acostumaram a uma vida simples. São econômicos e não exageram nas demonstrações de riqueza. Mas dizem: ?Não quero que meus filhos passem por aquilo que eu passei?. Então, eles dão aos filhos as facilidades que não tiveram. E esses filhos são educados com uma relação muito mal-resolvida com o dinheiro e o poder.
DINHEIRO ? O sr. diz que cada herdeiro tem que ter um projeto de vida. Por que?
BERNHOEFT ? Você pode criar uma empresa e dizer que tem cargo para todo mundo. Mas não é a situação ideal que todo membro da família olhe para a empresa como sua única opção. Na medida em que um indivíduo abre mão do seu sonho e vai trabalhar na empresa do pai por falta de opção, a probabilidade maior é de que ele seja um cara muito frustrado no futuro. Mais do que isso, que ele entre num processo de disputa de poder com irmãos e outros herdeiros, porque não dá para ter quatro presidentes, não dá para todo mundo ser diretor.
DINHEIRO ? O senhor citaria um exemplo desta situação?
BERNHOEFT ? Prefiro citar a família Moreira Salles (controladora do Unibanco), como exemplo de situação bem resolvida. Um irmão (Pedro) toca o banco e os outros têm sua vida bem eqüacionada (Walter e João são cineastas). Isso com certeza ajuda muito o relacionamento deles no papel de acionistas. Milu Vilela (maior acionista individual do Itaú) é outro exemplo nesse sentido. É uma pessoa que tem hoje um alto grau de visibilidade e reconhecimento público, que não é necessariamente vinculado ao banco, mas agrega valor a ele.
DINHEIRO ? As herdeiras mulheres são menos interessadas em suas empresas?
BERNHOEFT ? Nós temos um programa de formação de sócios de empresas nacionais, feito em parceria com a Bovespa. Dois aspectos têm chamado a atenção. O aumento da participação feminina, que tem sido, na maioria dos grupos, superior a 50%. E a participação de fundadores mais jovens, na faixa de 50, 55 anos. Ou seja, querendo lidar com o assunto sucessão em vida.
DINHEIRO ? A perda de fortunas familiares tem relação com a desnacionalização da economia a partir dos anos 90?
BERNHOEFT ? Você tinha no Brasil uma situação confortável. Uma inflação muito grande, que permitia ganhos financeiros. E mercado fechado, que permitia que algumas empresas ineficientes permanecessem por aqui sem nenhum problema. Quando veio o governo Collor, em 1990, várias famílias estavam em processo de transição. De primeira para segunda ou de segunda para terceira gerações. Aí veio uma abertura de mercado, e essas empresas não resistiram. Algumas famílias até tinham patrimônio, mas
não tinham liqüidez, ou seja, capacidade de injetar dinheiro na empresa. Os compradores externos vieram e se beneficiaram disso.
DINHEIRO ? Em que a empresa familiar dos Estados Unidos é diferente da empresa familiar do Brasil?
BERNHOEFT ? Não há diferença nenhuma. A Cargill, maior grupo de capital fechado dos Estados Unidos, é familiar. A Ford é uma empresa familiar. Está cheio de empresas familiares nos Estados Unidos. O que é diferente nos Estados Unidos é a estrutura familiar. Todos nós sabemos como é que o americano educa seus filhos para cair no mundo muito rapidamente. Essa educação familiar exige que os filhos lutem para conquistar seus espaços, inclusive nas empresas.
DINHEIRO ? O que muda na vida de uma empresa familiar com a entrada de um sócio capitalista?
BERNHOEFT ? Seja nacional ou estrangeiro, o sócio entra com olhar de investidor. Ele quer é retorno sobre o capital. Esta relação, sob alguns aspectos, pode ser extremamente útil para muitos empresários. Mas requer uma reeducação muito grande. Esta relação entre a família e os negócios tem realmente que ficar mais clara. Eu não posso mais usar o aviãozinho da empresa para ir à minha fazenda. Para muitos empresários, essa mudança é difícil. Alguns resistem porque sentem que vão perder vantagens e benefícios pessoais.
DINHEIRO ? O empresário que vende sua companhia se considera derrotado?
BERNHOEFT ? Uma das dificuldades maiores num processo de venda é definir o que o empresário vai fazer no dia seguinte. Porque, embora tenham um bom dinheiro, muitos deles não têm projeto de vida para o dia seguinte. Você tem o caso do (Abraham) Kasinsky (fundador da Cofap), que, com oitenta e poucos anos, começou um negócio novo. O (José) Mindlin (fundador da Metal Leve), que tem a sua vida cultural, é um exemplo raro no Brasil, porque a maioria dos empresários não tem outro interesse que não a empresa. Imagine a dificuldade de abrir capital.
DINHEIRO ? O caso da Natura é exceção?
BERNHOEFT ? O caso da Natura é exemplar. São três sócios que sempre tiveram uma visão de investidores.
DINHEIRO ? Do ponto de vista de um executivo profissional, empresa familiar é uma boa opção de carreira?
BERNHOEFT ? É uma opção crescente no Brasil. As empresas familiares que estão crescendo e se internacionalizando precisam de gente competente. O problema é vencer o preconceito, essa idéia que se tem de que numa empresa familiar você, em alguma hora, bate a cabeça no teto.
DINHEIRO ? E não bate? Quando chega perto do dono?
BERNHOEFT ? Bate, como bate em qualquer empresa. Numa estatal, a cada quatro anos, quando muda o governo, você fica na corda bamba. Numa multinacional, onde as decisões são tomadas em Tóquio ou Nova York, você nunca sabe o que vai acontecer. Numa empresa familiar, você está mais próximo da estrutura de comando, tem condições de influenciá-la, mas tem que tomar cuidado para não se imiscuir nas disputas de poder.
DINHEIRO ? Muito executivo de ponta já passou por isso, não?
BERNHOEFT ? Eu lembro do (ex-ministro Luiz Carlos) Bresser Pereira, no auge da crise do Pão de Açúcar, quando os irmãos estavam numa disputa muito forte e resolveram se afastar da gestão. O Abílio, o Alcides e o Arnaldo (Diniz, que dividiam o controle do grupo) botaram o Bresser Pereira para gerir a empresa. Uma vez perguntaram a ele como era administrar o Pão de Açúcar. Ele disse: ?É muito difícil, porque eu gasto 70% do meu tempo administrando a briga dos irmãos e não sobra tempo para administrar a empresa?. Na realidade, o problema não era de gestão. O problema eram os sócios.
DINHEIRO ? Dos casos de sucessão familiar de que o senhor participou, qual o mais bem resolvido?
BERNHOEFT ? Resolvido não tem nenhum. Tem vários encaminhados. Porque nunca está resolvido. A cada geração é uma nova situação. O caso Sadia, onde nove famílias têm hoje mais de 100 herdeiros, é bem encaminhado. Hoje está se fazendo um trabalho de preparo da quarta geração. É uma empresa que, neste momento, não tem mais ninguém da família na gestão. Mas nada impede que amanhã volte a ter. Como na Ford, que já teve o (Lee) Iacocca, depois alguém da família, em seguida o (Jacques) Nasser e agora um executivo da família (Bill Ford). Isso não representa nenhum retrocesso.