Entre erros e acertos, o terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva entra em sua segunda quinzena com uma imagem do Dia Um que ainda tem muito a dizer: a foto oficial dos seus 37 ministros. O ineditismo na diversidade de etnias, gêneros e idades guarda diversos ensinamentos para a iniciativa privada, que puxou essa agenda nos últimos quatro anos e que agora encontra respaldo institucional. “A semiótica da imagem da foto que viralizou quando se fechou a composição do primeiro escalão ministerial é muito poderosa”, afirmou à DINHEIRO Tayná Leite, gerente sênior para Direitos Humanos e Gênero do Pacto Global da ONU no Brasil.

Estatisticamente, o retrato do governo trouxe avanços. Contudo, ainda não corresponde à representatividade do País. Segundo o IBGE, dos aproximados 214 milhões de brasileiros, 51,1% são mulheres. No Ministério, elas são 29,7%. Na distribuição de raça na população, 56% são negros (pretos e pardos); 43%, brancos; e 0,4% indígenas. No alto escalão da Esplanada 70% são brancos; 27%, negros; e há também uma indígena, Sônia Guajajara, dona da pasta dos Povos Originários. Aqui, o primeiro ensinamento para empresas. Ainda que a proporcionalidade não seja ideal é preciso começar a incluir os grupos de maneira intencional, mesmo que de forma lenta.

Executiva da ONU, Tayná Leite faz ainda três alertas que companhias privadas, assim como fóruns públicos, precisam ter ao incluir minorizados. O primeiro deles é o que chama de conteúdo das indicações. Em outras palavras, não basta que o indivíduo pertença a essas comunidades. “Ele precisa ter conteúdo técnico e alinhamento estratégico com a agenda de direitos humanos, incluindo diversidade e inclusão”, afirmou. Os dois outros pontos passam por orçamento suficiente para implementar as ações; e planejamento estratégico e transversal.

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“Embora na posse do presidente Lula não tivesse uma pessoa trans, olhei a cena da subida da rampa com muita esperança e me vi representada” Raquel Virgínia Fundadora da Nhaí.

No que se refere ao planejamento, a narrativa e ações das empresas estão avançando rapidamente. Um dos indícios é observado na plataforma 99 Jobs. De acordo com Eduardo Migliano, cofundador e CEO da empresa, cresce o número de companhias que estão planejando melhor as vagas abertas, passando a levar em conta o que é realmente essencial. “Parece improvável, mas já houve época em que o local de moradia, o CEP do candidato era critério de corte”, afirmou. Assim como a exigência de inglês fluente, ou graduação feita em faculdades top de linha. Hoje, a discussão sobre a agenda e o letramento aumentou de forma transversal no mundo corporativo, o que está impactando de maneira positiva os talentos que se sentem mais seguros em aplicar para vagas.

Na própria 99 Jobs a evolução é observada. A quantidade de profissionais negros inscritos em programas de estágio e trainee em 2022 representou 44,5% do total, evolução de 269% sobre 2018. Já a quantidade de programas para vagas de entrada — estagiários e trainees — cadastrada na plataforma por empresas cresceu 1.175% na mesma comparação, representando 50% do total atualmente. Ainda que os números sejam de extrema importância, segundo Migliano é preciso levar a representatividade para a alta liderança. “Não dá para ter só diretores que reproduzem o pacto branco [racismo estrutural onde o preconceito está enraizado nos comportamentos e ações]” disse. “É preciso desenvolver os talentos diversos e aproveitar o repertório, a vivência e a formação que trazem.”

NA PRÁTICA Da teoria para a ação um case de walk the talk é o da Bayer. No mais alto escalão da companhia, dois representantes: uma mulher no posto de CEO do Grupo no Brasil, Malu Nachreiner; e o negro Maurício Rodrigues, presidente da divisão agrícola da empresa para América Latina. Eles fazem parte de uma jornada trabalhada internamente há cerca de nove anos com aprimoramento constante, inclusive na governança. Hoje, a diretoria de Diversidade, Equidade e Inclusão é comandada por Flávia Ramos e tem quatro gerentes para América Latina. Marilia Tocalino é uma delas e também uma representante do grupo PCD. “Como parte de um grupo sub-representado, sei que tenho espaço para crescer aqui, mas também temos consciência da autorresponsabilidade no processo”, disse. Nesse contexto, “ter uma alta liderança diversa traz um olhar plural necessário para que o Bayer consiga cumprir a missão de não ser apenas diversa, e sim inclusiva”.

Flavio Ferreira

“Não dá para ter só diretores que reproduzem o pacto branco. É preciso desenvolver os talentos diversos” Eduardo Migliano CEO da 99 jobs.

Ter um negro na presidência que seja alinhado à agenda ajuda em um dos maiores obstáculos para que empresas deixem o campo da narrativa para entrar em ação. Isso porque, segundo Carlos Domingues, diretor-executivo do Mover e líder de Diversidade e Inclusão da Pepsico, “as pessoas falam que enxergam o racismo no Brasil, mas não se veem racistas.” Para reverter o quadro, o caminho é a educação, o letramento e a conscientização. Outro desafio é fazer do caso de Maurício Rodrigues, mais uma regra do que exceção. “É urgente a necessidade de acelerarmos o desenvolvimento de carreira para os grupos minorizados e colocá-los na liderança.”

Segundo pesquisa da Deloitte, quanto mais alto o cargo, mais desafiadora se torna a representatividade. Na segunda edição do Diversidade, Equidade e Inclusão nas Organizações, entre as 374 empresas respondentes em 2022, as que tinham mulheres em cargos de diretoria e C-Level somavam 83%; sêniores 50+, 38%; raças e etnias, 33%; LGBTQIA+, 28%; e PCD, 10%. Já a participação nos Conselhos de Administração passa a: mulheres, 78%; 50+, 44%; raças e etnias, 15%; LGBTQIA+, 15%; PCDs, 5%. Entre as 90 companhias de capital aberto que compõem o Ibovespa, porém há somente duas CEOs mulheres e nenhum preto.

INCLUSÃO SOCIAL Além de programas internos de diversidade, muitas companhias investem no desenvolvimento profissional em comunidades vulneráveis, como a Nestlé em Jovem Baristas.

Se para esses grupos o cenário já é difícil, falar em inclusão do grupo LGBTQIA+ traz outro nível de complexidade. Um deles é o fato de que não há censo oficial dessa comunidade. Medir a representatividade, então, torna-se mais subjetivo. O outro é que essa é uma questão absolutamente pessoal que pode ser ou não reportada às companhias. Um dos raros casos de CEO assumidamente homossexual é o de Javier Constante, presidente da Dow América Latina e Dow Brasil. Em recente entrevista à DINHEIRO (edição 1.297), ele falou sobre a importância da representatividade. “Quando um membro LGBT entra na Dow e vê que o presidente, no caso eu, sou gay, sabe que ali tem oportunidade.” A regra, segundo ele, se repete para mulheres e comunidade negra que encontram representantes na alta diretoria. “Falta um PCD”, disse.

Tiago Betti, líder de Inclusão, Diversidade, Equidade e Experiência do Funcionário para Dow na América Latina, é a prova de que a narrativa se realiza na prática. Segundo ele, a agenda é trabalhada na companhia há 30 anos e foi iniciada com grupo de empoderamento feminino. Hoje são sete as redes de afinidades: mulheres, PCD’s, pretos e pardos, 50+, latinos e hispânicos, LGBTQIA+ e grupo geracional — voltado para a inclusão de novos colaboradores. Ele mesmo representante da comunidade homoafetiva, tem como missão ajudar a empresa a conquistar metas bem alinhadas. “Temos governança e métricas definidas para acompanhar o nosso progresso e alcançar os objetivos traçados para 2025.”

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“As pessoas falam que enxergam o racismo no Brasil, mas não se veem racistas” Carlos Domingues Diretor da Mover.

Em paridade de gênero para as posições de liderança, a Dow quer passar dos atuais 40% para 50% até 2025. Para pretos e pardos a meta é refletir, em longo prazo, a mesma participação da população do Brasil (56%), com a submeta de atingir 41% em 2025, sobre os 39% de 2022. Existem objetivos traçados também para os demais grupos com diversas ações afirmativas, com exceção do LGBTQIA+ pela dificuldade de capturar a autoidentificação dos funcionários respeitando-se a Lei Geral de Proteção de Dados. Mas a presença de Javier no mais alto nível hierárquico da região mostra que o trabalho é concreto. “Vejo nele a representatividade que não costumamos ver nas empresas”.

Ainda mais raro de se encontrar em grandes grupos são talentos trans. Raquel Virgínia, uma empreendedora trans, entende que esse processo precisa ser feito com cuidado. O risco, segundo a fundadora da Nhaí, empresa de insights para marcas que querem fortalecer o pilar da diversidade, é que se o processo de inclusão for mal feito, gere frustrações importantes. “O processo pode ser traumático para ambas as partes”, afirmou. Um efeito colateral seria a possibilidade “de a empresa decidir nunca mais contratar uma pessoa trans, ou que o talento passe a achar todas as empresas preconceituosas”. Mas mesmo com os desafios, Raquel sentiu na cerimônia de posse do novo governo um acolhimento. “Embora não tivesse uma pessoa trans, olhei a cena da subida da rampa com muita esperança e me vi representada”.

COMUNIDADE Representatividade fora dos muros coorporativos também conta. É como Angela Davis disse: “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. A Nestlé sabe disso. Além de programas internos com metas reportadas para a sede na Suíça — um exemplo no Brasil é a fábrica da Dolce Gusto (Montes Claros/MG) que já nasceu com paridade de gênero —, a empresa oferece programas de formação profissional para vulneráveis. Helen Andrade, head de Diversidade e Inclusão na Nestlé Brasil, destaca o Jovem Baristas. “Formamos baristas em comunidades e depois os indicamos para trabalhar em nossa rede parceira.” Atualmente 40 jovens estão em formação em Paraisópolis, bairro da capital paulista.

De grão em grão, reparações históricas estão em curso. E mais do que isso: empresas e governos já entendem que times diversos trazem repertórios diferentes, que se traduzem em ideias, inovação e resultados mais eficientes.