Beneficiadas com um perdão de dívidas concedido sob a bênção do presidente Jair Bolsonaro, as igrejas acumulam R$ 1,9 bilhão em débitos inscritos na Dívida Ativa da União (DAU). O Estadão/Broadcast teve acesso a uma planilha que detalha os tributos devidos pelas instituições religiosas. Algumas delas deixaram de pagar à União até mesmo a contribuição previdenciária e o Imposto de Renda já descontados do salário dos empregados.

Cerca de R$ 1 bilhão dessa dívida corresponde a débitos previdenciários não especificados, isto é, podem ser tanto a parcela devida pelo empregador quanto a parte recolhida em nome do empregado. Outros R$ 208 milhões do montante são contribuições patronais inadimplentes. Os valores incluem débitos em fase de cobrança, negociados em algum tipo de parcelamento ou até mesmo suspensos por decisão judicial.

Há ainda R$ 4 milhões em contribuições que as igrejas descontaram da remuneração de seus funcionários, mas não repassaram ao INSS. Deixar de repassar à Previdência a contribuição dos contribuintes configura apropriação indébita, um crime previsto no Código Penal e punido com dois a cinco anos de reclusão, além de multa.

Os valores consideram apenas as cobranças sob responsabilidade da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), sem incluir os débitos ainda em fase administrativa, que tramitam na Receita Federal.

Discórdia

As cobranças previdenciárias estão no centro de uma discórdia entre o Fisco e as instituições religiosas. A lei diz que a prebenda, como é chamado o valor recebido pelo pastor ou líder do ministério religioso por seus serviços, não é considerada remuneração, ou seja, seria isenta de contribuições à Previdência. Mas o próprio texto condiciona o benefício ao pagamento de valor fixo, sem parcela variável conforme a natureza ou a quantidade do trabalho executado.

A Receita começou a identificar nos últimos anos que igrejas se valiam da prebenda para distribuir participação nos lucros e pagar remuneração variável de acordo com o número de fiéis ou conforme a localidade do templo (mais informações nesta página). A lógica seria conceder pagamentos mais gordos a quem tivesse os maiores “rebanhos”. O Fisco começou, então, a lançar autos de infração e cobrar das igrejas os tributos devidos com multas e encargos sobre a parcela variável da prebenda.

Para tentar resolver o impasse, a bancada evangélica no Congresso Nacional emplacou em agosto do ano passado a aprovação de uma lei que derruba todas as fiscalizações que tinham como alvo a cobrança previdenciária sobre a prebenda.

Como revelou o Estadão/Broadcast, meses antes Bolsonaro havia promovido uma reunião entre o deputado federal David Soares (DEM-SP), filho do missionário R. R. Soares, e o secretário especial da Receita Federal, José Barroso Tostes Neto, para discutir os débitos das instituições religiosas. Procurados na época, tanto o Planalto como o deputado não quiseram se manifestar. “Isso aí é uma reunião com o presidente, eu não tenho nada a declarar”, afirmou Soares.

Bolsonaro, que já havia ordenado à equipe econômica “resolver o assunto”, acabou sancionando o trecho da lei que buscava liberar as cobranças sobre a prebenda.

Dias antes da aprovação da lei, a Igreja Internacional da Graça de Deus, fundada por R. R. Soares, ingressou com uma ação na Justiça Federal pedindo a anulação de uma cobrança de R$ 30,6 milhões em contribuições previdenciárias sobre a prebenda, cujo auto de infração foi lavrado em 2013.

Após a sanção, a defesa recorreu à lei recém-criada para tentar justificar a extinção dos débitos. Ainda não há sentença no caso, mas, segundo apurou o Estadão/Broadcast, a Receita Federal tem o entendimento de que a mudança recente na legislação não tem impacto sobre as cobranças em andamento.

Uma posição nessa linha foi dada pela juíza Adriana Barretto de Carvalho Rizzotto em despacho de 1.º de março deste ano. “Não há como se reconhecer que a atuação desrespeitou diploma legal não existente à época de sua ocorrência, independentemente da previsão do § 16 (…) incluído pela Lei nº 14.057, de 14 de setembro de 2020”, afirmou a juíza, referindo-se ao dispositivo patrocinado pela bancada evangélica.

A bancada evangélica tem se articulado agora para incluir, na reforma tributária, a ampliação do alcance de sua imunidade tributária para qualquer cobrança incidente sobre propriedade, renda, bens, serviços, insumos, obras de arte e até operações financeiras (como remessas ao exterior).

Arcabouço

O economista Rodrigo Orair, especialista em finanças públicas e ex-diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado, critica o arcabouço brasileiro de isenções tributárias às igrejas.

De acordo com ele, em outros países é comum que as instituições religiosas fiquem livres de Imposto de Renda da Pessoa Jurídica, mas não dos demais tributos, como a contribuição previdenciária. Já no Brasil, os benefícios têm alcance maior. “Uma coisa é isentar tributos pela prestação de serviços não mercantis. Faz sentido. Outra coisa é isentar a contribuição previdenciária, inclusive a do pastor”, diz. “A sociedade arcará com a aposentadoria deles por longos anos sem que eles tenham contribuído.” Em sua opinião, as igrejas não deveriam ser isentas da contribuição ao INSS, de 20% sobre a folha, muito menos deixar de repassar os valores recolhidos em nome dos empregados.

Regra desrespeitada

As igrejas têm imunidade constitucional contra a cobrança de impostos – que é só um tipo de tributo e não engloba as contribuições. O Código Tributário Nacional (CTN), por sua vez, condiciona a imunidade tributária à não distribuição de “qualquer parcela do patrimônio ou de suas rendas, a qualquer título”.

Ao detectar que as igrejas vinham distribuindo parte dos lucros obtidos com o dízimo dos fiéis, mesmo que de forma disfarçada por meio de contratos de prestação de serviços, a Receita entendeu que a imunidade estava afastada para esses casos – e passou a atuar de forma rigorosa.

Os dados obtidos pelo Estadão/Broadcast mostram que as igrejas devem R$ 270,8 milhões em Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPF); R$ 125,9 milhões em PIS/Cofins; R$ 101,9 milhões em Imposto de Renda Retido na Fonte (descontados dos empregados e não repassados à Receita); e R$ 90,4 milhões em Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Há ainda dívidas relacionadas a FGTS, contribuições ao Sistema S e ao salário-educação.

Na mesma lei que buscou livrar a prebenda de cobranças do Fisco, os parlamentares aprovaram isenção de CSLL. Esse dispositivo precisou ser vetado pelo presidente Jair Bolsonaro para evitar crime de responsabilidade, passível de impeachment, devido ao impacto fiscal. Em março, o Congresso derrubou o veto, gerando fatura de R$ 1,4 bilhão em isenções até 2024.

Especialistas chamaram a atenção para o fato de essa mudança ter sido aprovada dias depois de a equipe econômica fazer esforço pela aprovação, na PEC emergencial, de artigo que exige do governo a apresentação de um plano para cortar subsídios à metade em oito anos.

Na avaliação de técnicos do governo, a sucessão de eventos transmitiu a mensagem de que o plano de redução de renúncias tributárias é “para inglês ver”. Além da isenção futura, a derrubada do veto vai extinguir dívidas geradas a partir da CSLL. Ao Congresso, a Receita informou que o passivo que será perdoado é de R$ 221,94 milhões, mas cálculos atualizados, que incluem questionamentos na esfera administrativa, apontam para até R$ 450 milhões. Fora cobranças envolvendo a CSLL que estão sob responsabilidade da PGFN, de R$ 90,4 milhões. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.