por VanDyck Silveira

Caro leitor,

Nas últimas semanas muito foi falado sobre uma moeda comum entre o Brasil e a Argentina, e isso culminou em um encontro de cúpula envolvendo os presidentes dos dois países.

A ideia de uma moeda comum advém de um desejo de Lula e de Fernandez em diminuir a dependência do dólar em transações comerciais regionais, além de uma boa dose de ideologia radicada na Teoria da Dependência, criada por Raul Prebisch nos anos 50, e depois expandida e aperfeiçoada por ninguém menos do que Fernando Henrique Cardoso e Celso Furtado nos anos 60.

A Teoria da Dependência é um visão marxista de mundo e que preconiza que países da periferia, ricos em recursos naturais e subdesenvolvidos, são explorados pelas potências industrializadas capitalistas do eixo ou centro econômico global.

A teoria sugere que para romper com o subdesenvolvimento, países da periferia devem focar na substituição de importados industriais e passar a produzi-los domesticamente através de proteção da indústria local por meio de barreiras comerciais, joint ventures com empresas do eixo, exigências de componentes nacionais, relações comercias sul-sul e renúncias fiscais vultuosas para empresas estrangeiras passarem a produzir em território nacional.

Avançando para o século XXI, após o modelo da Teoria da Dependência ter falhado em todos os lugares onde foi aplicado, e de forma retumbante no Brasil e na Argentina, as “viúvas” da Dependência querem reconstruir o modelo, mas agora na política monetária através de uma moeda comum.

Em tese, essa moeda comum, o SUR, seria um regime monetário adicional ao das moedas locais, o real no Brasil, e o peso na Argentina, e seria utilizado para trocas comerciais entre os dois países. Posteriormente, seria estendido para os países membros do Mercosul, e no futuro mais distante poderia se tornar uma moeda comum regional, análoga ao euro na Europa, que consistirá em uma união monetária com o SUR como moeda comum em todo a região.

Muito bem, até aí temos o sonho!  Agora, partimos para a realidade que está contida no trabalho primoroso desenvolvido por Robert Mundell, que recebeu o Prêmio Nobel em Economia pela teoria de Optimal Currency Area (OCA), e Thomas D. Willett, entre outros notáveis, e que se tornou a base para a criação do euro e da Integração Monetária Europeia (EMU na sigla em inglês).

Antes de mais nada, a teoria, e a pratica com o euro, nos mostra que os países membros de uma OCA devem ter economias estáveis e controle fiscal, e endividamento baixo para que não exportem inflação e recessão entre si, e que tenham “business cycles” similares para que a política monetária única não beneficie ou penalize nenhum país.

Também, observamos que para uma OCA funcionar de forma eficiente, os países membros devem ter as seguintes características:

  1. Alta mobilidade de trabalhadores dentro da área sem exigências de vistos e burocracia desnecessária para que mão de obra possa inclusive enviar dinheiro para o país de origem e contribuir para seu fundo de pensão.
  2. Mobilidade de capital dentro da área com flexibilidades de preços e de salários para assegurar a fluidez de trabalhadores e capital de acordo com a oferta e demanda.
  3. Compartilhamento de risco monetário e/ou um arcabouço fiscal que distribua dinheiro para países e regiões onde haja dificuldades econômicas. Um país com excedente fiscal repassaria fundos para outro pais com déficit.
  4. Similar ciclo de negócios, onde expansões e contrações econômicas sejam muito parecidas.
  5. Um alto volume comercial entre membros da OCA e que as vantagens comparativas dos membros podem levar a alto nível de especialização para aproveitamento de eficiências através de economias de escala.
  6. Políticas homogêneas entre os países para que uma única política monetária atenda as necessidades de todos os membros de uma OCA, e isso inclui práticas fiscais.

Uma vez observados os argumentos e critérios para formação de uma OCA, sem ser um economista, qualquer pessoa pode responder se Brasil e Argentina atendem a esses critérios!

A meu ver, uma OCA entre nós e a Argentina não atende a sequer um único critério disposto acima e que, portanto, estamos jogando tempo fora ao debater este tema ao invés de endereçar os tantos problemas prioritários que a economia brasileira tem há várias décadas.

Vamos olhar pelo lado dos argumentos do governo, que parte da afirmação que devido ao alto volume de comércio com a Argentina nos beneficiaríamos de uma moeda única. De imediato, podemos refutar essa lógica uma vez que o total de trocas comerciais com a Argentina não chega a 5% das exportações Brasileiras, e o Mercosul em sua totalidade não chega a 6%.

Levando essa lógica ao pé da letra, nós já temos uma moeda comum para tal necessidade, o dólar, pois a maioria das trocas se dá em commodities e produtos semimanufaturados cujos componentes têm uma forte participação de importados que são pagos em dólar, ou tem seu valor estipulado em dólar, caso das commodities incluindo petróleo.

Entretanto, se o dólar não é a opção por alguma razão desconhecida, como o Brasil tem a maior economia e a moeda mais forte, o comércio com a Argentina (e todo o Mercosul) poderia ser feito em reais se a Argentina tivesse algumas reservas na moeda brasileira, ou, se adotasse o real como moeda corrente como ocorre por lá pelos últimos 20 anos com o dólar.

Seguindo os argumentos do governo, outro ponto seria diminuir a dependência no dólar. Como o comércio entre os dois países tem uma pauta liderada nos seguintes produtos:

Brasil – Argentina

  1. Partes e acessórios de veículos
  2. Automóveis de passeio
  3. Outros produtos industrializados
  4. Minério de ferro
  5. Papel, celulose e cartão

Argentina – Brasil

  1. Maquinário de transporte de mercadoria
  2. Automóveis de passeio
  3. Trigo
  4. Industria de transformação
  5. Motores e pistões

Como podemos observar, o comércio entre as duas nações ocorre prioritariamente em bens que tem parte relevante de seu valor final em importados, e em commodities, cujos preços são determinados pelo mercado global em dólar.  Portanto, uma moeda nova apenas traria ineficiências e contrariedades extras porque haveria a necessidade de trocar unidades de SUR por dólares, e depois converter dólares em reais e pesos. Qual seria a vantagem dessa nova moeda que as moedas atuais não têm?

Olhando pelo lado fiscal, ambos os países vivem em caos com dívidas elevadas e gastos astronômicos pelos governos sem contrapartida de ancoras fiscais criveis. Isso gera inflação, e vemos que tanto Brasil como Argentina têm  dificuldade em conter o avanço dos preços no últimos anos.

Atualmente, a Argentina está entre os países com maior inflação no mundo com cerca de 100% em um ano, e essa situação seria exportada para o Brasil que teria que aumentar muito mais uma taxa Selic que já é a mais alta do mundo, e isso empurraria a região, Brasil e Argentina, para uma recessão brutal com desemprego em dois dígitos e uma paralisação da produção industrial. Seria isso que ambicionamos para o Brasil?

Como economista e politicamente independente das correntes atuais, vejo esse debate como SURreal, parafraseando o Alexandre Schwartsman, e totalmente precipitado, inócuo e até irresponsável para um país como o Brasil, que tem outras prioridades nos fronts econômico e social.