25/06/2003 - 7:00
Valdemir Saoncella, conhecido como ?Alemão?, não
fala inglês, não fez MBA nem foi contratado por um headhunter. Mas não o menospreze. Poucos entendem tanto da moeda americana quanto ele. Sócio da Pioneer, uma das quatro corretoras que dominam o mercado de câmbio interbancário, Saoncella é um dos donos do dólar no País. Seu poder é imenso. Quase todas as vezes que um banco vende dólares para outro, o negócio é intermediado por uma das quatro empresas ? Pioneer, Finambrás, Fluxo e Didier Levy respondem por até 90% das operações de câmbio entre bancos. Cada uma
delas gira de US$ 300 milhões a US$ 500 milhões por
dia, ou até US$ 10 bilhões por mês. ?Somos uma
bolsa de valores privada?, diz Saoncella.
A descrição não poderia ser mais apropriada. Logo ao entrar no escritório da Pioneer, no centro velho de São Paulo, ouve-se uma gritaria infernal. Com um telefone em cada mão, um operador se levanta da cadeira e berra uma oferta para comprar dólares. Do outro lado da mesa, dois jovens respondem na mesma hora, com mais gritos e sinais nervosos. Ao todo, são 20 funcionários espremidos numa sala do tamanho de um consultório médico, cercada com vidro para abafar o som. Cada um deles atende dois bancos e, por isso, carrega sempre dois telefones na mão ou junto à cabeça. Essa cena, de um pregão privado de dólar, é única no mundo e só se repete nos salões das rivais Finambrás, Fluxo, Didier Levy ? e, em menor escala, da Midas.
É nesses ambientes, pouco conhecidos pelos brasileiros comuns, que se trava a batalha diária pela cotação do dólar no Brasil. As mesas de operação das quatro corretoras são o palco de negócios ? e de especulação ? entre 40 bancos ativos no mercado de câmbio. As empresas dos donos do dólar são tão influentes que algumas delas
até criaram sua própria PTAX, indicador calculado pelo Banco Central com a cotação média do dólar que serve para reajustar o valor dos títulos da dívida do governo atrelados à moeda americana. A PTAX privada das corretoras é usada como referência de mercado, uma antecipação do índice que será anunciado pelo BC no fim do dia. ?Somos o termômetro mais preciso do câmbio no Brasil?, afirma
Geraldo Lessa, sócio da Fluxo.
Tanta concentração de poder nas mãos de tão poucos incomoda autoridades financeiras, bancos e concorrentes. Há um movimento, apoiado pelo BC, para criar um leilão de dólar à vista na Bolsa de Mercadorias & Futuros. ?Precisamos abrir a roda de negociações de dólar no Brasil?, diz Marcos Souza Barros, diretor de câmbio da Associação Nacional das Corretoras (Ancor). O argumento é que, em ambientes fechados, as informações circulam menos e é mais difícil fiscalizar o mercado. Em tese, dizem os críticos, um mercado fechado seria mais suscetível a manipulação de cotações. Num pregão público, garantido pela câmara
de compensações da BM&F, os bancos se sentiriam
mais à vontade para investir, dizem os defensores.
?Com mais transparência haveria mais liquidez e
até as corretoras ganhariam com isso?, diz Renato Rabello, diretor do banco Branif Primus.
A pressão para mudar o endereço das negociações de dólar provoca reações entre as quatro grandes corretoras do câmbio. Elas são sobreviventes de uma guerra comercial travada nos anos 90. Até então, o câmbio era controlado com mão de ferro pelo BC e
pelo Banco do Brasil. Os negócios foram liberados no governo Collor e, com o Plano Real, a especulação ferveu. Bancos colocavam até US$ 10 bilhões na mesa de apostas num único dia e 20 corretoras disputavam a intermediação das operações. Depois da desvalorização do real, em 1999, os riscos aumentaram, os bancos diminuíram as apostas para até US$ 1,5 bilhão por dia e sobraram entre quatro a seis corretoras. Hoje, elas brigam entre si pelo mercado ? roubando operadores
(e clientes) umas das outras.
?O mercado está nas mãos de quatro ou cinco corretoras porque elas garantem a liquidez das operações e como sempre foram sérias e nunca apresentaram problemas, ganharam a confiança dos bancos?, argumenta Luiz Henrique Didier, sócio da Didier Levy e presidente da Abracam, associação de corretoras de câmbio, que se separaram da Ancor há dois anos para defender os interesses específicos. Mesmo reunidas em torno da nova entidade, Didier Levy, Pioneer, Finambras, Fluxo e Midas têm visões diferentes sobre o futuro do mercado. A Finambras, considerada em avaliações informais (não há dados oficiais) como a maior delas, diversificou seus negócios entre vários tipos de operações com câmbio e já se prepara para perder o mercado cativo do dólar interbancário. ?Não há como barrar a evolução?, diz Alexandre Gomes Fialho, gerente da corretora comandada por Ricardo Sanchez, uruguaio naturalizado brasileiro. ?O mercado funciona bem, não
há por que mudar?, diz João Medeiros da Silva Filho, sócio da
Pioneer e outro dos donos do dólar.
Prejuízo. Se os leilões privados fossem trocados por um pregão público, as corretoras teriam muito a perder. Elas ganham uma fração dos dólares negociados (entre US$ 5 e US$ 8 para cada US$ 1 milhão), mas no volume acabam obtendo receitas maiores do que as concorrentes de outros setores. Todas elas oferecem outros serviços em câmbio para empresas, aproveitando inclusive as informações e a liquidez do leilão privado de dólar. Seus donos fizeram sua carreira e ganharam a vida na batalha diária do câmbio. Valdemir Saoncella, o ?Alemão?, nasceu em Tupi Paulista, é filho de um operário da fábrica de brinquedos Estrela e começou a trabalhar aos 13 anos, como auxiliar de câmbio da corretora Montarini. Passou por várias instituições financeiras, até conhecer três de seus sócios na corretora Prime, de onde saíram para montar a Pioneer. ?Ninguém aqui tem gravatinha de ouro?, brinca Saoncella, que tem como sócios João Medeiros, Carlos Gandolfo, Oreste Baraldi e Reinaldo Bonfim.
É uma história parecida com a de Geraldo Lessa Soares, da Fluxo. Filho de lavradores da cidade de Conceição do Almeida, no interior da Bahia, Soares se mudou para São Paulo em 1972 e trabalhou como auxiliar de escritório do Bank of London. Subiu os degraus da carreira, sempre na área de câmbio. ?Minha vida é o câmbio?, diz o sócio da Fluxo, junto com Carlos Tinelo e Claudio Arruda. A trajetória da família Didier também está ligada ao dólar. Desde a década de 20, o avô de Luiz Henrique enviava cartas diárias ao governo para receber autorização para comprar e vender a moeda americana para clientes como a General Motors. Seu sócio, Eduardo Alfredo Levy Júnior, era dono de corretora e foi presidente da Bolsa de Valores de São Paulo. ?Ouço falar em câmbio desde que nasci, há 55 anos?, diz Luiz Henrique. Já Ricardo Sanchez, da Finambrás, trabalha com câmbio há 25 anos tanto no Brasil como também na Argentina e no Uruguai. Ele acaba de mudar a sociedade. Até o ano passado, tinha como parceiro Jorge Peirano, integrante da família dona do grupo argentino/uruguaio Velox, recentemente liquidado. Os negócios da Finambrás, segundo Sanchez, não têm ligação com o Velox. ?Jorge Peirano era sócio como pessoa física?,
diz o dono da Finambrás, que tem planos de expandir seus negó-
cios para novas áreas, certo de que haverá uma migração do
mercado interbancário para a BM&F. ?Os mercados eletrônicos e
a Bolsa vão acabar dominando os negócios de dólar entre os
bancos?, diz Sanchez. ?Infelizmente, os leilões de dólar das
corretoras serão bem mais silenciosos.