14/01/2004 - 8:00
No futuro imaginado pelo neozelandês Andrew Niccol, diretor do filme Gattaca, a farmacogenética será uma ciência tão desenvolvida que as pessoas vão saber, logo no nascimento, as doenças que têm mais chances de desenvolver. A cura, então, se dará com medicamentos baseados no código genético de cada um. O filme, lançado em 1997, não foi um sucesso de bilheteria e tampouco ganhou prêmios em Hollywood. Apesar disso, a busca do remédio ?sob medida? continua na agenda da indústria farmacêutica. Enquanto o ?padrão Gattaca? não vira realidade, os laboratórios vão investindo seus bilhões de dólares para se aproximar o máximo possível dele ? ou seja: dotando de ?inteligência? as drogas já existentes. O maior impacto dessa técnica na vida das pessoas é a redução na freqüência com que o medicamento deve ser consumido. Um alívio e tanto para quem sofre de doenças crônicas ou têm de tomar medicação por períodos longos, como os diabéticos e os cardíacos. Os maiores laboratórios do mundo têm pesquisas nesse sentido. A alemã Bayer recentemente lançou o Cipro XR. Em sua versão original, esse antibiótico usado no combate de infecções urinárias, tem de ser ingerido duas vezes por dia. A nova fórmula permite cortar à metade a dose recomendada, graças ao mecanismo digno de ficção científica. Ele faz com que 35% do princípio ativo seja descarregado no organismo de uma só vez, enquanto o restante é liberado ao longo do dia, em pequenas porções. Sem dúvida, uma vantagem competitiva para uma empresa que arrecada US$ 1,2 bilhão (10% da receita global) com a venda de antibióticos.
O pioneiro dessa categoria foi o Adalat Oros, lançado pelo laboratório alemão em 1992. Versão ?esperta? do anti-hipertensivo, a pílula é revestida de uma membrana semipermeável, feita de acetato de celulose, que solta, paulatinamente, o princípio ativo. Desse modo, a dose diária caiu de três para um comprimido. ?Nosso objetivo é aumentar o conforto dos pacientes e melhorar a aderência ao tratamento?, diz Rosana Lucia David, gerente de marketing da Bayer do Brasil. E também aumentar o faturamento com medicamentos de maior valor agregado. A família Adalat colabora com receitas de US$ 775 milhões e a comercialização de drogas em dose única diária já responde por metade das vendas globais da companhia.
Ao investir nesse nicho os laboratórios também esperam preservar os pesados investimentos feitos na descoberta de novas drogas. ?É uma forma relativamente barata de ampliar a vida útil dos medicamentos, esticando a validade das patentes?, avalia Denise Alvarenga, analista da área farmacêutica da consultoria Latin America Financial Services (Lafis). Entre o tubo de ensaio e a prateleira das farmácias cada remédio consome, em média, US$ 800 milhões. Por ano, as companhias do setor aplicam US$ 60 bilhões em pesquisa e desenvolvimento, o equivalente a 14% de sua receita global. E foram exatamente essas cifras que motivaram a direção da Merck Sharp & Dohme, gigante de US$ 51 bilhões, a dar um upgrade no Fosamax. Na versão turbinada do produto, usado para tratar da osteoporose, basta ingerir um comprimido por semana. O convencional tem de ser consumido a cada 24 horas. A velha máxima segundo a qual quem quiser conforto tem de desembolsar mais também vale para o setor farmacêutico. As ?drogas inteligentes? são, em média, 50% mais caras que as tradicionais. Mas isso não significa a canibalização do mercado. No geral, os laboratórios continuam faturando com as duas versões. ?O médico é soberano para indicar a formulação que melhor se adapta a cada paciente e ao ritmo que ele deseja imprimir ao tratamento?, argumenta João Sanches, diretor da Merck Sharp & Dhome. O ?novo? Fosamax, que já responde por 90% das vendas da família, é uma honrosa exceção.
Especialistas explicam que o que torna a droga inteligente não é simplesmente o uso de uma concentração maior das substâncias que compõem o seu princípio ativo. Cada elemento é fruto de exaustivas pesquisas. A única diferença é o valor investido. Os cientistas da Roche, por exemplo, estão estudando 35 substâncias capazes de dar origem a remédios nessa linha. Uma delas já possibilitou ?melhorar a pontaria? do Herceptin (indicado para o tratamento de câncer de mama e do colo do útero), fazendo com que ele atue diretamente no tumor, evitando efeitos colaterais como a queda de cabelo. Especialistas acreditam que a corrida em busca de ?drogas inteligentes? é a única forma de os laboratórios preencherem o vácuo entre a perda de patentes e a descoberta de novos medicamentos. Recentemente, a Eli Lilly sentiu na carne como pode ser penoso não ter mais a exclusividade de uma droga revolucionária, como o Prozac, que lhe rendia US$ 2,4 bilhões por ano, sem ter nada que colocar no lugar. Sem dúvida, é motivo de sobra para entrar em depressão.