03/08/2025 - 17:30
Pesquisadores no Brasil e na Alemanha estão criando um “Duolingo indígena” para gamificar a revitalização de línguas nativas ameaçadas de extinção. O aplicativo está em fase de desenvolvimento e teste em duas comunidades indígenas em Mato Grosso e Rondônia, com a colaboração de pessoas indígenas e o uso de inteligência artificial (IA).
Sem fins comerciais, o projeto nasceu entre os cientistas brasileiros Fabrício Gerardi, da Universidade de Tübingen, e Gustavo Polleti, da Universidade de São Paulo. O objetivo é replicar, gratuitamente e só para línguas indígenas, o sucesso de aplicativos que propõem o aprendizado com tarefas curtas e lúdicas, com adaptações às sensibilidades da cultura indígena.
O BILingo, cujo nome temporário faz alusão a Línguas Indígenas Brasileiras (Brazilian Indigenous Languages, em inglês), não tem associação oficial com outros do setor, apesar de ser fortemente inspirado em alguns deles, sobretudo o Duolingo. O nome deverá ainda ser trocado para outro aportuguesado.
A expectativa é que o lançamento ocorra no ano que vem para as primeiras línguas — a bororo e a makurapi. O diálogo com as comunidades pioneiras conta com o apoio de pesquisadores com experiência nos seus territórios.
“Eu acredito ser inédita uma iniciativa com este número de dados e intensidade”, afirma Gerardi. “As colaborações envolvem quem tem expertise em linguística com o trabalho das comunidades indígenas. Nós oferecemos o layout, e o conteúdo quem cria são elas.”
Resgatando letras e sons
O censo de 2010 do IBGE mapeou 274 línguas indígenas faladas no Brasil — menos de um quarto das 1,2 mil que, estimam cientistas, havia antes da chegada dos colonizadores europeus.
Já a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), que trabalha com outros dados, contabiliza 190 línguas sob risco de extinção no Brasil.
Na Terra Indígena Rio Branco, em Rondônia, Jéssica Makurapi é uma dentre vários jovens que não falam a língua materna do próprio povo. Aos 24 anos, ela se admira ao ouvir anciãos falarem em makurapi. Mas não consegue reproduzir nada de ouvido.
Desde a infância, ela conta, seus pais e avós escolheram se comunicar com ela em português, por medo de discriminação.
“O plano é a gente pesquisar palavras e frases para botar dentro do aplicativo”, diz Jéssica, que estava presente quando duas pesquisadoras, em maio, levaram a proposta à sua comunidade. “Vai ajudar muito no nosso aprendizado. Como eu não aprendi antes, estou tentando aprender algumas palavras e frases agora.”
O desafio começa em formar uma base de dados com palavras e fonemas que, ao longo de séculos desde o início da colonização europeia, foram sendo perdidos a cada geração. Apenas metade das línguas indígenas no Brasil têm descrições razoavelmente completas ou avançadas, estimam pesquisadores.
São várias as fontes para abastecer o aplicativo. Membros mais jovens da comunidade consultam os falantes nativos remanescentes – frequentemente, anciãos ou professores indígenas. Além disso, resgatam-se livros e outros resultados de décadas de trabalho de campo por estudiosos. Ou, ainda, horas de gravações da leitura da bíblia em idiomas originários, usados por décadas por missionários para evangelização.
“Lutando pela língua”
Para os bororo, um repositório já acumula 60 mil frases geradas com base em recursos linguísticos e etnográficos. Os cantos, mitos, vídeos de festas e rituais e nomes específicos para flora e fauna estão também disponíveis numa biblioteca online de materiais de apoio para o aprendizado da língua e da cultura bororo.
O professor indígena Mariel Kujiboekureu é o principal responsável pela iniciativa no Terra Indígena Meruri, fazendo um pouco de tudo para alimentar o aplicativo. A história do seu povo foi marcada, no século 20, pela evangelização salesiana em regime de internato e políticas de assimilação pelo Estado brasileiro. Os resultados incluíram a separação de famílias, o corte da transmissão cultural e a proibição da língua bororo em sala de aula.
“A maioria na comunidade não fala a língua indígena. Não é mais como antes, porque houve uma ruptura”, ele diz. “Por isso, fazemos agora essa busca. Estamos lutando por essa língua e precisamos de parceiros.”
Os dados, então, viram o arcabouço para gerar ainda mais textos, áudios e traduções, além de exercícios didáticos que aparecem na interface do aplicativo. Todos eles passarão por pessoas indígenas antes de serem disponibilizados ao público.
“As bases de dados hoje são escassas e dispersas, e a IA pode preencher estes buracos”, explica Polleti, que desenvolve o BILingo. “A ideia é otimizar o tempo do falante nativo. Revisar o material e corrigir eventuais deficiências é muito mais rápido do que produzir do zero.”
Debate social e ético
Em conexão com a iniciativa, dois eventos foram realizados desde o ano passado em Cuiabá para a formação pedagógica de professores bororo, e novos cursos estão previstos, com apoio da Secretaria de Estado de Educação do Mato Grosso e da missão salesiana.
Conversas estão em andamento para levar o aplicativo para outras duas línguas indígenas, em comunidades onde faltam recursos para o aprendizado.
“Vai ser possível produzir materiais didáticos independentemente de ter linguistas à disposição”, afirma Fernando O. de Carvalho, professor do setor de linguística do Museu Nacional, também envolvido na iniciativa. “Há carência de especialistas abertos a esse tipo de trabalho.”
Uma versão offline do aplicativo também estará disponível, pensando em comunidades onde a conexão de internet é deficiente.
Há ainda várias preocupações éticas que permeiam não só o desenvolvimento do aplicativo, como a discussão sobre a expansão da IA para a revitalização de línguas raras.
Dentre elas, estão obter o consenso e participação dos povos indígenas, garantir a inclusão de variações linguísticas regionais e proteger dados armazenados. Ou, ainda, considerar possíveis mudanças temporais ou inconsistências ao recorrer a materiais criados por pessoas não indígenas no passado.
IA vira tendência
A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) passou a integrar, em julho, a Coalizão para a Diversidade Linguística em Inteligência Artificial. O objetivo da iniciativa internacional da Unesco é criar diretrizes para o desenvolvimento da IA que sirvam para promover línguas indígenas e as incluam em sistemas automáticos.
“Essa inclusão precisa ser avaliada caso a caso, de modo informado e autônomo pelas próprias comunidades”, disse, em painel especializado na Tailândia, o servidor Cleuber Amaro, da Funai, segundo a Agência Brasil. “Sem isso, corremos o risco de repetir lógicas extrativistas sob nova roupagem.”
Pelo menos 40% das 7 mil línguas faladas no mundo estão hoje ameaçadas, de acordo com a Unesco, e a maioria delas é indígena. Em média, uma língua desaparece a cada duas semanas.
“A língua é a identidade de um povo”, explica Carolina Aragon, professora de Linguística da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), uma das pesquisadoras que intermedia as conversas com o povo makurapi. “Quando o jovem escuta o ancião contar uma história na língua indígena, ele entende questões relacionadas a raízes ancestrais. É diferente de ouvir no português, que é marcado como a língua do outro.”
Em 2023, a USP e a multinacional americana de tecnologia IBM lançaram um projeto conjunto que desenvolveu ferramentas, a partir do processamento de linguagem natural, para capacitação da escrita em guarani mMbya na aldeia Tenondé Porã, em São Paulo.