23/10/2002 - 7:00
O buraco já é fundo e vai sendo cavucado a cada dia. A Previdência Social que será entregue ao próximo presidente apresenta este ano até setembro um déficit de R$ 17 bilhões entre o que arrecada de 27,5 milhões de contribuintes da iniciativa privada e o que paga em benefícios para 20,9 milhões de aposentados. No setor público, é pior. São 946 mil aposentados para 949 mil servidores ativos. Enfim, se o próximo presidente da República quiser realmente resolver a questão do déficit público, o grande calcanhar-de-Aquiles na economia brasileira, terá de mexer no vespeiro da Previdência. ?Caso a Previdência fique como está, o País quebra?, diz João Elísio Ferraz de Campos, presidente da Federação Nacional das Empresas de Seguros (Fenaseg). ?O fosso que separa as receitas dos benefícios tem de desaparecer.?
No ritmo atual, ele só se tornará mais profundo. A cada mês, dizem as estatísticas oficiais, 10 mil brasileiros se aposentam com idade média de 53 anos. Segundo o IBGE, a expectativa de vida da população cresce um mês e meio por ano. Em 10 anos o tempo de pagamento das aposentadorias será um ano e três meses maior que o atual, de 26 anos entre as datas médias das aposentadorias e dos falecimentos. Se a Previdência pagasse de uma só vez todos os compromissos já assumidos com contribuintes e aposentados teria de desembolsar a fantástica soma de R$ 2 trilhões, equivalente a dois PIBs. ?Qualquer que seja a nova configuração da Previdência, não é possível escapar dessa dívida?, alerta Campos.
Essa situação atinge a economia brasileira de outras formas. ?Na maioria dos países, o sistema previdenciário é base da poupança nacional, a fonte de recursos para investimentos de longo prazo?, diz Arnaldo Rossi, ex-presidente do Instituto Nacional de Seguridade Social. ?O País terá de elevar a taxa de poupança, que hoje está em 17% do PIB, para cerca de 23%. Sem reformar a Seguridade Social não será possível atingir esse nível.?
O grande ralo está nas próprias regras da Previdência. ?O Brasil é o país onde o cidadão se aposenta mais cedo e goza de benefícios previdenciários por mais tempo?, diz o ministro da Previdência Social José Cechin. Na média, o cidadão brasileiro passa à condição de beneficiário do sistema entre 7 e 12 anos mais cedo do que na Europa e nos Estados Unidos. Neste país, a idade média para o início da aposentadoria é de 67 anos. Sobre esse quadro nada animador paira o fantasma do aumento do salário mínimo. Hoje, 13,3 milhões de brasileiros recebem benefícios sociais no valor de um mínimo. Para cada real de aumento nessa remuneração, a folha de pagamentos da Previdência cresce em R$ 200 milhões anualmente. A receita eleva-se apenas em R$ 20 milhões. ?O impacto de qualquer aumento do salário mínimo no sistema é brutal?, afirma o ministro Cechin. ?Qualquer mexida tem conseqüências graves.? Existem, porém, algumas luzes. Não se tem notícia, nos últimos anos, de qualquer atraso nos pagamentos feitos pela Previdência aos 13,5% da população brasileira que recebem algum tipo de benefício. Mas isso só tem sido possível porque o Tesouro tem coberto o rombo a cada mês. Cechin, porém, vê uma melhora devido a algumas recentes mudanças feitas na Previdência por meio do Congresso. Essa minirreforma possibilitou que a idade média da aposentadoria no País tenha crescido de 48 anos para 53 anos e meio. Outro elemento a favor de uma transição razoavelmente segura na Previdência do atual para o novo governo é o fato de ela estar mais organizada. Centenas de esqueletos foram retirados do armário. Seu banco de dados é bem fornido. Quem entrou no mercado de trabalho há cerca de 20 anos já consegue acessar informações sobre seu prontuário com o sistema pela internet. As estatísticas e projeções estão sendo reunidas num livro para facilitar a transição.
Mesmo assim, o trabalho a ser feito pela frente, para equacionar as distorções do sistema, é enorme. Hoje, além do Brasil, apenas o Irã, o Iraque e o Equador têm seus sistemas previdenciários assentados sobre a base do cálculo de contribuições por tempo de serviço. Na iniciativa privada, 35 anos para os homens e 30 anos para as mulheres. Em outros países, o modelo mais comum é a aposentadoria por idade. Nos EUA, por exemplo, homens e mulheres não podem se retirar antes dos 65 e 60 anos, respectivamente.
No Brasil, porém, não há gargalo maior do que o do setor público, no qual muitos privilégios estão intocados. O mais gritante é o direito de se aposentar com o último salário. Outras regras provocam situações esdrúxulas. Há funcionários do INSS que se aposentaram com 37 anos de idade, após 23 anos de serviço, graças à contagem, para efeito de contribuição, de licenças-prêmios. Será preciso, para qualquer que seja o eleito, construir uma maioria no Congresso para acabar com privilégios deste tipo ? e ter força suficiente para enfrentar os poderosos interesses que serão atingidos pelas reformas necessárias para desarmar a bomba-relógio da Previdência.