24/04/2001 - 7:00
DINHEIRO ? O governo admitiu a necessidade de racionamento. A crise poderia ter sido evitada?
JOSÉ AUGUSTO MARQUES ? Essa é a crise mais anunciada da história do Brasil. Há meses estamos insistindo na necessidade da campanha de conscientização. O governo está perdendo tempo. A campanha ainda não está realmente no ar. Acredito muito na sociedade, mas é preciso mostrar ao cidadão o que se pode fazer para resolver a situação de crise que estamos vivendo. Há cinco anos, faltou água em São Paulo e a Sabesp fez uma campanha brilhante de conscientização e o resultado foi uma redução de 10% no consumo. Agora precisamos economizar entre 10% e 15% de eletricidade. Uma estatística interessante: se cada uma das cerca de 40 milhões de ligações residenciais pudesse desligar uma lâmpada de 100 Watts, poderíamos evitar o racionamento. Claro que na prática não é possível fazer isso, pois há locais onde existe apenas uma lâmpada e desligá-la seria deixar pessoas no escuro. Mas mostra que é possível contornar o problema se a sociedade fizer sua contribuição.
DINHEIRO ? Até que ponto a redução do consumo de energia irá afetar o crescimento do PIB?
MARQUES ? Haverá redução de produção, mas não acredito que o crescimento será muito afetado. Mas o PIB industrial, previsto para crescer 7%, deverá ficar em 5% por conta do racionamento.
DINHEIRO ? De quem é a culpa pela crise energética?
MARQUES ? Claro que não podemos deixar São Pedro de fora. Nos últimos 50 anos, nunca tivemos índices pluviométricos tão baixos por tanto tempo. Mas este é o terceiro ponto. O primeiro é uma década lá atrás de baixíssimos investimentos. O segundo, os entraves ao modelo de privatização.
DINHEIRO ? Que entraves são esses?
MARQUES ? O governo optou inicialmente por privatizar o setor, mas na metade do caminho criou um negócio híbrido. O modelo original de privatização e concessão de serviço público era bom. Começamos corretamente pelas distribuidoras. Essa primeira etapa foi um sucesso. A segunda etapa, da privatização do setor de geração, foi interrompida por razões políticas. Aí começou a haver uma distorção no sistema.
DINHEIRO ? Como assim?
MARQUES ? O governo fez a geração permanecer no poder do Estado, que não investiu, pois não tem recurso. Não apenas a geração deixou de ser privatizada como o governo não incentivou o capital privado a ter taxas de retorno compatíveis com o padrão internacional e que lhe permitissem investir na expansão do sistema energético. Some-se a isso a desvalorização, que corroeu bastante a equivalência das tarifas em relação ao dólar.
DINHEIRO ? Com a privatização, as tarifas vão subir muito e quem vai acabar pagando a conta é o consumidor. O sr. concorda com isto?
MARQUES ? A tarifa vai subir sim. É a lei de oferta e demanda. Mas ela deve se estabilizar e para tanto existe um órgão regulador que precisa garantir a expansão do sistema. Sua missão é regular o mercado, não permitindo que ele salte para o oportunismo natural que uma atividade deste tipo pode ocasionar. Não podemos achar que o mercado sozinho se regule, principalmente numa situação em que a demanda é menor que a oferta. No livre mercado, será preciso uma nova estrutura tarifária, que permita uma distribuição mais justa dos recursos energéticos entre populações de poder aquisitivo diferente.
DINHEIRO ? Com a desregulamentação do setor energético, o governo previu a criação de 49 termoelétricas. Destas, até agora, só 15 estão em construção, sendo 13 por iniciativa da Petrobras. Onde estão os investidores?
MARQUES ? O governo anunciou um programa ousado, que precisa de um período de adaptação, uma vez que somos um País essencialmente hidrelétrico. As termoelétricas não representam mais de 2,5% da geração. A escolha é correta: a construção de uma usina termoelétrica é mais rápida do que a de uma hidrelétrica, o tempo de maturação do investimento é menor e a geração é mais flexível, ou seja, pode ser acionada em tempos de aumento de demanda e desligada num período de retração. Só que se estabeleceram dois grandes problemas. Um é o preço do gás importado, uma vez que essas termoelétricas irão consumir, basicamente, o gás do gasoduto Brasil?Bolívia, que é vendido em dólar. O outro é o custo dos equipamentos importados. O gás representa 60% do custo de produção de energia termoelétrica. Ou seja, os custos e investimentos são em moeda forte e a receita, em real.
DINHEIRO ? Essa demanda pela dolarização de tarifas tem sido alvo de muitas críticas. A economista Maria da Conceição Tavares chamou isso de ?estelionato?. Por que os investidores deveriam ter esse privilégio?
MARQUES ? Nunca defendi dolarização de tarifa. Qualquer coisa trazida para o realismo as pessoas dizem que é dolarização. Nossa moeda é boa, mas precisamos de mecanismos para diluir a defasagem entre os custos e a receita, pois precisamos de capital externo para tocar o sistema. Isso não é dolarização, muito menos estelionato. Estelionato é disfarçar para o cidadão que o que é estatal pode ter baixa remuneração e depois cobrar mais em impostos. No passado, usou-se tarifa pública como instrumento de política monetária, com o governo absorvendo custos para evitar inflação. Era a ciranda do calote, ninguém pagava ninguém. A situação se resolveu com a atuação de Eliseu Rezende, ao negociar em 1992, quando era presidente da Eletrobrás, a lei de reestruturação do setor elétrico. A lei permitiu um acerto de contas entre governo federal e concessionárias estaduais e corrigiu as tarifas, permitindo que o setor voltasse a funcionar.
DINHEIRO ? A privatização de Furnas vai sair?
MARQUES ? O modelo original previa privatizar, mas, por razões políticas sérias, isso ainda não aconteceu. No momento, discutir a modelagem da privatização é perda de tempo. O mais importante é garantir do novo proprietário, seja ele quem for, um compromisso com a expansão do sistema. Isso é muito mais importante do que saber se a venda será pulverizada, se haverá ou não bloco controlador. É fundamental encontrar um modelo ideal, mas este talvez não seja o melhor momento para se discutir isso. A pulverização que o governo defende pode ser mais democrática, mas não irá garantir a expansão do sistema na velocidade necessária. Não conheço nenhuma experiência no mundo em que você pulveriza a venda e ao mesmo tempo faz o novo acionista assumir um compromisso formal de investimentos. O controle está por natureza pulverizado e, numa administração profissional, você precisa de assembléias gerais para aprovar investimentos.
DINHEIRO ? A Abdib identificou US$ 90 bilhões em projetos que estão aguardando investimentos. Por que não foram adiante?
MARQUES ? Há bons projetos, a demanda cresce, o Brasil já conseguiu atrair volume grande de capital privado. Mas não fomos suficientemente criativos para juntar tudo isso e fazer acontecer. Não é porque a geração permaneceu estatal, mas sim porque ela não cresceu, pois o governo não tem dinheiro para investir e nem deu incentivo suficiente de maneira a atrair o capital privado. O investidor está interessado, mas precisa de uma taxa de retorno para o investimento condizente com o mercado internacional. Por conta dessa indefinição e falta de incentivo, muitas empresas estrangeiras que chegaram a montar escritórios no País foram embora. A National Power britânica e a americana Southern, por exemplo. A National Grid, também britânica, continua aqui, mas investiu em telecomunicações e não em energia. Falta uma liderança forte, uma autoridade que defina o modelo e toque adiante, assim como aconteceu com as teles.
DINHEIRO ? Estamos vendo muitas empresas pregando uma maior eficiência energética por conta da crise. Há males que vêm para o bem?
MARQUES ? Somos um país latino e, como tal, deixamos a situação chegar no limite para agir. A crise mostra a necessidade de ampliar nossa base de fontes energéticas para não dependermos quase que exclusivamente das hidrelétricas. Há coisas simples e baratas que poderiam ser feitas e que não o são por falta de vontade política. Um exemplo: São Paulo é uma das poucas grandes cidades do mundo a não produzir energia elétrica a partir da queima do lixo urbano. Paris tem. Tóquio também. Em Paris, quase no centro da cidade, existe uma grande usina de geração, totalmente bancada pela iniciativa privada. Você resolve dois problemas de uma vez ? gera energia e diminui o lixo. É ambientalmente correto e economicamente viável. Há 15 anos se discute isso em São Paulo, já chegaram a ser feitas duas ou três licitações e o projeto não foi adiante por falta de vontade política, porque existem negócios importantes com o lixo nas grandes cidades. Outra fonte fantástica é o bagaço da cana. Só no Estado de São Paulo, o potencial de geração de energia elétrica a partir de sua queima é superior a 500 megawatts. Isso é maior do que a média das termoelétricas que estão sendo construídas.