07/09/2001 - 7:00
Nova York, 11 de setembro, 10h30 da manhã: bombeiro com o seu extintor observa impotente o tamanho da catástrofe que tirou do cenário de Manhattan as torres do World Trade Center, ícone do capitalismo globalizado
Na sexta-feira 14 o Senado americano aprovou, por 98 a zero, o estado de guerra e destinou US$ 40 bilhões para a operação, precipitando no planeta o sentimento de um novo conflito de proporções mundiais. Mas quem é o inimigo? Na noite do dia 13, em Washington, uma multidão apressada desceu as escadas do Capitólio, tangida por agentes de segurança. Havia uma ameaça de bomba no complexo que abriga o Senado e a Câmara americana. Depois do maior ataque terrorista da história, que devastou Nova York e destruiu parte do Pentágono, a nação mais rica e poderosa do planeta vive sob o signo da paranóia e da guerra. Em poucos dias, os americanos aprenderam que podem esperar o pior, a qualquer momento, em qualquer lugar, de qualquer um. O inimigo invisível está em toda parte.
Na Casa Branca, um presidente George W. Bush acuado pela crise deliberava sobre o futuro. Ele tem sob a sua responsabilidade um país enfurecido, cego de dor, que não compreende por que foi vitimado e exige vingança, de preferência rápida e brutal, contra o ataque da terça-feira, que ceifou milhares de vidas. Com apreensão, o mundo espera pela decisão do homem mais poderoso do planeta, que pode mudar o futuro de bilhões de pessoas. A guerra em larga escala, a recessão econômica ou o isolacionismo diplomático são opções cujos efeitos se farão sentir
do Rio de Janeiro à Jacarta.
Em meio às lágrimas e a tristeza eu vejo a oportunidade de livrar as gerações futuras do terrorismo?, disse o presidente na tarde de quinta-feira, durante uma entrevista improvisada. ?Estamos diante da primeira guerra do século 21. Declararam guerra contra nós e agora vamos levar o mundo à vitória.? Respondendo a uma pergunta de natureza pessoal, o presidente que está no cargo há oito meses, e chegou a ele depois de uma eleição conturbada, sucumbiu. ?Eu tenho um trabalho a fazer e pretendo fazê-lo?, desabafou, com voz embargada e os olhos cheios de lágrimas. A liderança e o preparo de Bush para enfrentar essa crise têm sido questionados diariamente. Pior ainda, ele tem sido criticado por se deixar ficar longe de Washington, cuidando da sua segurança pessoal, enquanto os EUA sofriam o maior ataque externo da sua história ? maior mesmo que o mítico Pearl Harbor, de 7 de dezembro de 1941, que entrou na história americana como o Dia da Infâmia. O país esperava que seu presidente estivesse na capital para tomar o leme, mas ele passou o dia voando de uma a outra base aérea. Não faltou quem lembrasse que na crise dos mísseis de Cuba, em 1962, John Kennedy estava na Casa Branca.
No final da semana passada, enquanto a macabra contagem de corpos prosseguia em Nova York, o alvo da ira americana começava a ganhar um perfil mais definido. Trata-se do Afeganistão, um dos países mais pobres do mundo, controlado pelo regime medieval do Talibã. Ali se abriga sob proteção do governo o milionário saudita Osama Bin Laden, apontado como principal suspeito pela organização do atentado de terça-feira. Sob o impacto do sangue, das mortes e do medo que isso se repita em outros países desenvolvidos, o secretário de Estado Colin Powell conseguiu apoio da Otan para atacar os terroristas e seus patronos onde quer que se encontrem. Gerhard Schroeder, primeiro-ministro alemão, disse que havia sido declarada uma guerra contra o Ocidente e que todos se sentiam americanos. Esse consenso antiterror está se configurando como uma nova ordem internacional. Nela, o poder de polícia americano será usado com desenvoltura e apoio internacional contra qualquer país que se deixe perceber como um criador de caso. Mesmo Rússia e França, tradicionalmente zelosas da sua independência, se alinharam a Washington nessa idéia. O presidente Jacques Chirac afirmou que a França só espera a orientação de Bush para agir. Configura-se, assim, o cenário de choque de civilizações antevisto pelo americano Samuel Huntington há 10 anos. Em artigo polêmico ele descrevia o cenário em que muçulmanos se oporiam à civilização ocidental por todos os meios. O confronto começou.
O que Bush precisa oferecer para conseguir apoio explícito da Otan em sua cruzada punitiva é um conjunto de evidências contra Bin Laden e seus patrocinadores ? e elas parecem estar à caminho. Na quinta-feira, o FBI dizia ter certeza de que a operação havia sido levada a cabo por 18 seqüestradores, divididos em quatro aviões ? os dois que se chocaram contra as torres do World Trade Center, em Nova York, o que foi lançado sobre o Pentágono e o quarto, que caiu numa área rural da Pensilvânia. Os 7 mil agentes mobilizados pelo governo americano desvendaram, até agora, uma rede de 50 pessoas supostamente envolvidas no atentado. E os dados que vieram a público até o momento sugerem que os terroristas são de origem árabe. Nove suspeitos já estão presos. Fontes do FBI estão dizendo aos jornalistas que 23 mil pistas conduzem à organização de Laden, a Al Quaeda. E acadêmicos de fora do governo sustentam que governos como o do Iraque dão suporte material e logístico aos terroristas. ?Qualquer governo que abrigue grupos capazes desse tipo de coisa, prove-se ou não que estejam envolvidos, terá de
pagar um preço. E um preço exorbitante?, escreveu o
ex-secretário de Estado Henry Kissinger.
De uma outra forma, o mundo econômico também calcula o tamanho da sua conta. FMI e Banco Mundial vão parar: devem cancelar sua reunião anual marcada para o fim do mês. A economia americana, que cresceu apenas 1% nos últimos 12 meses, pode ter sido empurrada pelos terroristas para a recessão, arrastando consigo o resto da economia mundial, do qual os EUA são 30%. ?Estou cada vez mais convencido de que não existe economia global, só economia americana?, costuma dizer Luiz Carlos Mendonça de Barros, ex-ministro das Comunicações. Dentro dos EUA, os economistas estão de olho nos indicadores de confiança, aqueles que regem o consumo, responsável por dois terços do PIB americano de US$ 11 trilhões. Será que um país assustado e deprimido vai continuar enchendo lojas e comprando apartamentos? A maioria dos economistas acha que não, mas ninguém sabe ao certo. Já houve guerras das quais os EUA saíram em recessão, como a do Golfo em 1990, e outras, como a Segunda Guerra, que cimentaram a prosperidade do país. O economista americano Albert Fishlon está otimista. ?Vejo mais gastos públicos pela frente, uma sociedade mobilizada e confiança dos consumidores?, diz ele. ?As Bolsas vão abrir em alta na segunda.?
Eis um importante termômetro. Depois de quatro dias fechadas, algo que não ocorria desde a crise de 1929, as Bolsas americanas abrirão nesta segunda sob enorme expectativa. Se registrarem queda, pulverizando ainda mais riqueza de investidores e consumidores, pode ser a pá de cal no crescimento. Nesse cenário talvez não adiante o esforço concentrado do Federal Reserve, em conjunto com os bancos centrais da Europa e do Japão, para oferecer US$ 200 bilhões aos mercados financeiros e manter a liquidez global. Tampouco adiantará os US$ 20 bilhões do governo americano destinados à reconstrução de Nova York e Washington. Nem mesmo a antecipada ampliação dos gastos militares do país, que já consome US$ 300 bilhões ao ano, fará efeito. ?Os EUA são uma economia privada de trilhões de dólares?, afirma Carlos Langoni, diretor do Centro de Economia Mundial da Fundação Getúlio Vargas, do Rio de Janeiro. ?É impossível que o gasto público possa compensar uma retração do consumo.? Por outro lado, se as Bolsas abrirem em alta essa pode ser a senha para uma onda patriótica de consumo e investimentos. Se isso vale como exemplo, na quarta-feira 12 o Wal-Mart registrou a venda de 88 mil bandeiras americanas, contra uma média de 6 mil por dia.
Para o Brasil, a importância dos acontecimentos nos Estados Unidos é enorme. O País necessita de US$ 55 bilhões anuais para fechar as suas contas externas e não se sabe de onde o dinheiro virá no próximo ano. Até a semana passada, governo e Fundo Monetário vinham contando com cerca de US$ 17 bilhões de investimentos diretos em 2002, mas a crise nos EUA pode fazer com que esse dinheiro desapareça. ?Os investidores vão procurar ativos que tenham mais liquidez, como euro, dólares ou títulos do governo americano?, afirma Sandra Utsumi, economista-chefe da BES Investimentos. O economista Paulo Rabello de Castro vai mais longe. Diz que se formou o pior dos mundos para os países emergentes como o Brasil, que, sem defesas financeiras próprias, sofrem de enorme dependência externa. ?É como no corpo humano?, compara ele. ?Numa crise o sangue reflui para os órgãos centrais e deixa os sistemas periféricos sem sangue.?
As metáforas sobre centro e periferia econômica nunca pareceram tão eloqüentes quanto na semana passada. De uma hora para outra, percebeu-se o óbvio: mais do que um símbolo, Manhattan é o êmbulo fundamental do capitalismo globalizado. A Bolsa de Valores movimenta US$ 50 bilhões por dia, mais que um ano de Bovespa. Seu mercado de moedas responde por boa parte do US$ 1,5 trilhão diário negociado no planeta. Em Wall Street são gerados 2,7% do PIB americano, na forma de serviços financeiros. Um único banco de investimentos semi-destruído pelo atentado ? o Morgan Stanley, que ocupava 25 andares do World Trade Center e ali tinha a sua sede mundial ? administra um patrimônio de US$ 485 bilhões, mais do que a soma de ativos do sistema financeiro brasileiro. Há dúvidas sobre como essas instituições vão resistir à enorme perda de capital humano e técnico da semana passada. A corretora de títulos Cantor Fitzgerald, especializada em papéis do governo americano, perdeu quase 700 dos seus 1.000 funcionários. De acordo com um estudo da Universidade de Minnesota, o primeiro atentado no World Trade Center, em 1993, causou a falência instantânea de 20% das empresas instaladas no edifício e de outras 37% algumas semanas depois. Naquela ocasião perderam-se apenas dados e clientes ? agora as próprias pessoas desapareceram, levando com elas conhecimentos e habilidades insubstituíveis.
Muito do talento produzido em Wall Street encontra-se agora soterrado sob uma montanha
de 25 metros de altura de escombros e esmagado sob um peso de 500 mil toneladas de detritos.
Além das duas torres, caíram também os edifícios
6 e 7 do complexo. E há outros edifícios em vias
de desabar. O sul de Manhattan abaixo da 14a Avenida tomou ares de paisagem lunar. Está coberto por centímetros de poeira e toneladas de entulho. Há carros queimados e esmagados como num filme B de ficção científica. Na noite de quinta-feira, foram encontrados os restos de uma cabine de avião. Nela, havia um homem sem uniforme e os demais uniformizados. Seriam o seqüestrador e a tripulação? O prefeito de Nova York, Rudolf Giuliani, fala em 5 mil mortos, mas há quem sugira que o número poderia chegar a 50 mil ? 10 mil a menos que as mortes americanas no Vietnã. Parte desse contingente mórbido é formada por brasileiros. Na noite de quinta-feira o consulado de Nova York ainda procurava 28 brasileiros desaparecidos desde o atentado. Entre eles estão Anne Marie Ferreira Sallerin e Ivan Kiryllos Barbosa, funcionários da corretora Cantor Fitzgerald. Ambos trabalhavam no 105º andar do WTC. A indignação diante dessa tragédia, e a incapacidade de compreendê-la senão nos termos simplistas de bem versus mal, provocou, na quinta-feira, uma onda de agressões contra imigrantes árabes e seus negócios. Mais de 20 lojas foram atacadas e o presidente Bush foi obrigado a vir à público pedir moderação e respeito. Não vai ser fácil.
A manhã de terça-feira passada em Nova York será lembrada como um novo dia de infâmia. O sol de final de verão reluzindo sobre os prédios pôs nas ruas levas de turistas e moradores apressados. Romy Schultzer, jovem diretora da StarMedia, estava entre eles, caminhando para o trabalho, como faz diariamente. Sentia-se um pouco incomodada pela quantidade de gente no seu
caminho habitual, mas estava feliz. ?O dia estava tão lindo?,
lembra. De repente, o horror. De onde estava, Romy pôde ver,
a dez quadras de distância, a primeira explosão na torre sul do
World Trade Center. ?Primeiro pensei que fosse um filme?, diz ela. ?Depois fiquei apavorada.?
No mesmo instante, pouco depois das 8h45, John Clark Sepulveda, executivo da Societé Generale, prepara-se para a reunião das 9 horas que dá largada ao seu dia de trabalho. Mas antes que a reunião começasse chegou a informação de que um Boeing 767 acabara de bater contra o WTC, no sul de Manhattan. Foi um choque, mas não chegou a assustar. O banco francês está instalado no edifício do Rockfeller Center, muitas quadras distante de Wall Street e da confusão que começava. Minutos depois, com a apreensão já instalada, veio a notícia: outro avião atingira a segunda torre. Era um atentado. ?Ninguém mais conseguiu trabalhar?, conta Sepulveda. ?Todos temos amigos que trabalhavam naqueles prédios.?
Dentro das torres o inferno estava instalado. O impacto do primeiro avião, o Boeing 767 da American Airlines, foi confundido com uma bomba. ?As pessoas se agarravam às coisas e se olhavam desesperadas. O prédio balançou e eu tive certeza de que iria morrer?, contou o paulista Guilherme de Castro, operador de uma corretora no 25º andar da torre norte. Para escapar, Castro lançou-se escada abaixo e descobriu que as saídas de emergência haviam se transformado em labirintos cheios de fumaça e portas trancadas. Demorou 20 minutos para chegar à rua. Àquela altura, a torre sul há havia sido atingida pelo segundo avião e faltava uma hora para que ela viesse abaixo ? mas ninguém previa isso. Os bombeiros chegaram em grande número e foram entrando nos prédios para coordenar a retirada. A primeira leva deles morreu às 10 horas, quando caiu a torre sul. A segunda leva, que chegou em socorro da primeira, foi soterrada com a queda da outra torre. Ao todo, 200 bombeiros e 70 policiais desapareceram sob os escombros. Pela forma como os prédios caíram, cogitou-se de uma explosão no subsolo, coordenada com o impacto dos aviões. Não foi assim. O incêndio, causado pelo combustível dos aviões e o vazamento de gás, elevou a temperatura no miolo dos prédios a 1.100 graus, derretendo a estrutura de aço de sustentação das torres. Isso fez com que as lajes caíssem empilhadas. Nem o mais delirante terrorista poderia ter antecipado esse pesadelo de engenharia.
Por tudo isso, esse 11 de setembro de 2001, com seu espanto, fogo e fisionomias fantasmagóricas cobertas de poeira, ficará estampado para sempre na retina de bilhões de pessoas em todo o planeta. Esse é o dia em que o mais ousado ataque terrorista da história, perpetrado contra a cidade mais cosmopolita do mundo, pôs abaixo as torres que simbolizavam a prosperidade capitalista.
Onze de setembro de 2001 foi, acima de tudo, o dia em que um número ainda não sabido de seres humanos pereceu brutalmente sob os escombros de um mito, o da inexpugnabilidade americana. Essa banalíssima terça-feira vai entrar na história como o dia em que o americano comum descobriu que pode ser ferido mesmo no interior do maior e mais protegido edifício público do mundo. Quando o Boeing da American Airlines despencou sobre o Pentágono, matando talvez duas centenas de funcionários militares, a maior potência econômica e militar do mundo perdeu a inocência. Agora, os Estados Unidos olham o resto do mundo com profunda desconfiança. E o mundo olha de volta, com medo.