07/01/2011 - 7:00
DINHEIRO ? O mercado acionário vem apresentando várias mudanças nos últimos anos. Quais delas o sr. acha mais relevantes?
ARY OSWALDO MATTOS FILLHO ? Se avaliarmos as duas últimas décadas, vemos que poucos mercados de capitais do mundo avançaram tanto e evoluíram tão depressa como o brasileiro. Basta comparar a situação no início dos anos 90. Tínhamos pouca liquidez, uma bolsa dominada por ações de empresas estatais e francamente aberta a movimentos de manipulação. A governança corporativa das empresas era complicadíssima e hoje isso melhorou muito. Os acionistas minoritários não estão em uma situação perfeita, mas estão muito melhores do que há alguns anos, quando quase não tinham direitos.
DINHEIRO ? Por que os minoritários sempre foram prejudicados?
MATTOS FILHO ? Porque ter sócios não fazia parte da cultura das empresas. Quando eu presidia a CVM, recordo que disse em um evento de administradores de fundos de ações que não havia dez companhias abertas confiáveis no Brasil. Houve uma razoável indignação na plateia, mas era verdade. Algo que testemunhei naquela época mostra bem isso. Não vou citar o nome em respeito ao cidadão, mas em outro evento público um representante de empresas abertas chegou a pedir que as companhias fossem dispensadas de publicar seus balanços. O argumento dele era de que publicar balanço era uma despesa inútil, pois esses números não interessavam a ninguém. O mais interessante não foi apenas ele ter defendido uma proposta desse tipo, mas que muitos dos que estavam lá, mesmo tendo ficado quietos, pareciam achar a ideia boa.
DINHEIRO ? Como explicar essa atitude?
MATTOS FILHO ? Vamos colocar as coisas em perspectiva. Nos anos 70, o governo resolveu estimular as empresas a migrar para o mercado de capitais. O estímulo foi o pior possível, oferecendo empréstimos subsidiados do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econô-mico e Social). A contrapartida para ter acesso ao dinheiro barato era abrir o capital da empresa. Isso ocorreu quando o mercado era pequeno, não havia cultura de bolsa, estávamos acabando de sair do crash de 1971 e a CVM, que havia sido criada em 1976, era pouco aparelhada para ser um fiscal eficiente. Como resultado, muitas empresas abriram capital sem que isso estivesse em sua estratégia, tampouco em sua cultura. Outro problema foi a criação das ações preferenciais. A lei permitia que o capital fosse dividido em 33% de ações ordinárias, com direito a voto, e 66% de ações preferenciais. Ou seja, o empresário poderia controlar 100% das decisões com 17% das ações, o que não favorecia os minoritários.
DINHEIRO ? Pouca coisa faria prever o avanço que ocorreu. Como explicá-lo?
MATTOS FILHO ? Foi uma feliz conjunção de fatores, que envolveu alguns abnegados representantes do mercado, a bolsa e empresários dispostos a admitir sócios para que suas empresas tivessem acesso mais fácil ao capital. A primeira tentativa de mudança ocorreu em 2001, por meio da reforma da Lei das Sociedades Anônimas, e esbarrou na resistência do mercado e das empresas. A saída, então, foi passar ao largo da lei e criar o Novo Mer-cado, em que as empresas tinham de se comprometer a cumprir certas regras de bom comportamento para ser aceitas e havia o acordo implícito de que eventuais peraltices poderiam significar a expulsão do clube. Demorou alguns anos para que isso se tornasse realidade, mas uma hora alguns empresários perceberam que tratar bem os sócios não era apenas uma questão de cavalheirismo. Melhorar a governança corporativa valorizava as empresas e colocava dinheiro no bolso dos donos. Esse argumento foi irrefutável.
Cerimônia de capitalização da petrolífera na Bovespa
DINHEIRO ? Esse processo está completo?
MATTOS FILHO ? Não. Acredito que ainda é preciso avançar nos instrumentos de fiscalização e que precisamos oferecer mais alternativas ao investidor.
DINHEIRO ? Como assim?
MATTOS FILHO ? Vamos começar pelas alternativas ao investidor. O produto ação é o mais complicado do mercado financeiro. Para saber o que está fazendo, o investidor tem de conhecer contabilidade para ler o balanço. Tem de entender de legislação para compreender o ambiente regulatório em que a empresa atua, algo cada vez mais importante. Precisa ter um razoável conhecimento econômico para poder saber como está o setor e, finalmente, tem de manter todas essas informações atualizadas em um ambiente extremamente dinâmico. Ou seja, investir em ações com conhecimento é difícil. Uma das saídas é terceirizar essa tarefa para os gestores de fundos, mas os investidores deveriam ter outras alternativas.
DINHEIRO ? Quais?
MATTOS FILHO ? Uma alternativa possível, que aliás acabou de receber um pacote de estímulo do governo, são os papéis de renda fixa das empresas, como debêntures e notas promissórias. Eles podem render mais do que os títulos públicos, permitem diversificar bastante o risco, que não ficará concentrado apenas no governo e nos bancos, e são mais fáceis. O investidor aplica o dinheiro e sabe que vai receber a remuneração desse capital periodicamente e que, ao fim de algum tempo, receberá seu principal de volta. O risco é se a empresa quebrar, mas saber avaliar se uma empresa está saudável ou não para pagar suas dívidas é muito mais simples para o investidor médio do que decidir entre várias ações, por exemplo.
DINHEIRO ? Por que esses papéis não pegam no Brasil?
MATTOS FILHO ? Falta um pouco de cultura do investidor e falta um pouco de esforço de divulgação por parte das entidades de mercado. Mas os executivos da bolsa têm dito que querem aumentar a participação desses papéis nos negócios, então vamos ver.
Fábrica da Sadia em Chapecó (SC)
DINHEIRO ? E em relação às deficiências na legislação? A CVM não avançou bastante?
MATTOS FILHO ? Avançou, sim, mas aí existe aquele fator chamado natureza humana. Para cada fiscal que se esforça para criar uma norma há um exército de fiscalizados tão inteligentes quanto ele que se esforçam para burlar as regras. Por isso, faz parte do jogo o fiscal estar atrasado no processo de fiscalização e só poder atuar em retrospecto. Isso não é uma deficiência exclusivamente nossa, mas ocorre se o regulador chamar-se CVM, Banco Central, Federal Reserve (Fed, o banco central americano) ou SEC (Securities and Exchange Commission, órgão que fiscaliza o mercado de capitais dos Estados Unidos).
DINHEIRO ? O fiscal sofistica a regra e o fiscalizado sofistica a burla?
MATTOS FILHO ? Sofistica a burla ou inventa um novo problema. Um bom exemplo é o que aconteceu em 2008 com Aracruz e Sadia. Os acionistas minoritários e a CVM não tinham como saber que empresas tradicionais, reconhecidas e sérias, que eram especializadas respectivamente em celulose e em carnes tinham se transformado em pesados especuladores com derivativos cambiais. Se os acionistas tivessem sabido disso antecipadamente, alguém poderia ter perguntado se essa era uma prática segura para as empresas. Mas, nesse caso, as operações eram tão sofisticadas e dinâmicas que não havia como o regulador agir. Em casos como esse, a única solução é aprender com as experiências e exigir, para as demais empresas e nos exercícios seguintes, que esse tipo de risco esteja claramente definido para os investidores. Há outras providências que podem ser tomadas, como dar mais poder aos auditores e aos conselhos fiscais, por exemplo.
DINHEIRO ? A CVM também deve mudar?
MATTOS FILHO ? A CVM deve enfrentar um período de decisões difíceis, por um simples motivo. Hoje, a participação estatal no mercado de capitais voltou a crescer e é mais difícil para a CVM fiscalizar o chefe, que é o governo.
DINHEIRO ? Que problemas isso causa?
MATTOS FILHO ? O principal evento do mercado em 2010 foi a capitalização da Petrobras. Foi uma operação quase exemplar. A maior empresa do Brasil, a segunda maior empresa da bolsa, a maior venda de ações da história até então, e todos se comportaram bem. Os bancos de investimento não falaram demais, as corretoras não falaram demais, os analistas tomaram um extremo cuidado com cada palavra sobre a operação. O problema é que o presidente da empresa, Sérgio Gabrielli, e o chefe dele, que coincidentemente era presidente da República na ocasião, diziam a todo momento que comprar ações da Petrobras era um bom negócio. Se isso tivesse ocorrido durante uma operação conduzida por uma empresa privada, a CVM teria, muito justamente, mandado interromper a operação. A perspectiva de aumento da participação do Estado na economia pode aumentar o peso das empresas estatais no mercado, provocando mais eventos desse tipo. Esse é um risco para o qual poucos investidores atentaram, mas que eu acho muito importante de agora em diante.