30/10/2002 - 7:00
A manda, Eraldo, Gilberto, Maria, Antonio, Florêncio, Adaílsa, Abel, Paulo, Zezinho… Click. A foto da família ficará para sempre guardada na memória de seu Gilberto, 56 anos, cinco filhos e alguns netos. O lavrador aparou barba e cabelo para o dia do retrato, vestiu roupa de igreja, uma calça rancheira asseada e chinelo de dedo novo.
E pegou um pau-de-arara para percorrer os 18 quilômetros do sítio até a ?rua? ? é assim que ele chama a cidade grande. Sol a pino de quase 40 graus. O retrato de hoje já tem lugar de honra garantido. Repousará em cima da televisão em cores, um dos poucos luxos da casa simples de três cômodos e pau-a-pique, no meio do agreste pernambucano. Às 8 horas, já eram mais de 30 familiares que se aboletavam numa praça do centro velho de Garanhuns. Mais gente do que seu Gilberto esperava. ?Nunca sei quantos são. Só juntamos a parentada em velório ou casório?, brinca, sorriso acanhado na boca de dentadura ruim. Desta vez, não era festa, nem morte. Era um dia histórico na família. 27 de outubro de 2002. O dia em que um membro ilustre, primo legítimo de seu Gilberto, o mais famoso filho de Garanhuns, Luiz Inácio Lula da Silva, se tornaria presidente do Brasil.
A vitória de Lula era a vitória de centenas de caboclos, cujas histórias só não são iguais porque a ficção não conseguiria enganar a realidade duas vezes. Uma já era demais. Quem poderia supor que desta terra quente, de pouco roçado e muita seca, sairia um presidente da República? Caetés ? localidade onde nasceu Lula, antiga área rural de Garanhuns, hoje município independente ?amanheceu estranha. Cidade pacata, 20 mil habitantes e uma só avenida, virou ponto de encontro. Mulheres de lenço na cabeça, homens de chapéu, crianças de vestidinho de chita, chegavam lá montados em caminhões. Era carona grátis.
Cabra inteligente. ?Quer dizer que eu também posso ser presidente??, diz João Pedro Barbosa, 40 anos, um vizinho de onde morou Lula, carregando água para abastecer os quatro filhos. Ninguém acreditava, mas a família não tinha por que duvidar. ?Ele é um cabra muito inteligente?, atesta Pisa na Fulô ? apelido do forrozeiro Florêncio Melo Filho, 65 anos, cuja avó era irmã da mãe de Lula. ?Em todo lugar que trabalhou era ele quem pedia a conta. Lula nunca foi demitido?, orgulha-se o primo. Dona Maria de Aquino, vizinha e parenta, perdeu a conta das vezes que ouviu o sogro lembrar da história do menino mirrado de cabeça grande que percorria quilômetros a pé e voltava arcado carregando uma tina do açude. ?Água é a coisa mais difícil de ter por essas bandas?, explica dona Maria. Até hoje. A barragem de Caetés não vê chuva há seis meses. No perímetro urbano, ainda tem. O abastecimento é feito por carros-pipa. E nos sítios? ?Tem vez que demora um mês todinho. Quando chega é festa?.
Desde que deixou o sertão aos 7 anos com sua mãe e irmãos ? numa viagem de pau-de-arara por 13 dias e 3 mil quilômetros de chão ? Lula voltou poucas vezes a Garanhuns. Umas três ou quatro, no máximo. A última visita que fez foi pouco antes de começar a campanha, em meados deste ano. Num almoço em família, entre um pedaço de bode e um copinho de cana, o primo Eraldo sugeriu: ?Volte a usar a música de 89?, disse Eraldo Ferreira dos Santos, torneiro mecânico, sindicalista e político (qualquer semelhança com a vida de Lula não é mera coincidência). Lula não gostou muito da idéia. Afinal, o embate político com Collor não era agradável de se lembrar. Mas prometeu não esquecer o conselho. O refrão de música, durante o dia da eleição, era tocado em ritmo de forró em todos os bares de beira de estrada. Até hoje, quando a seca aperta, a São Geraldo de Garanhuns ? versão moderna daquele pau-de-arara ? tem que botar ônibus extra, tamanha a procura por uma viagem que durará 46 horas. Assim como muitos dos Silva, a maioria volta. Sem dinheiro, sem emprego e alguns anos mais velho. Até pouco tempo atrás, quem quer que desembarcasse na cidade grande acabava parando na casa de dona Lindu, mãe de Lula. Era certeza de pouso, um pratinho de comida e até um sonho de emprego. Lula era o avalista dos amigos e parentes. Bastava alguém chegar e ele já ia tentando arrumar emprego. Na Volks, na GM, na Mercedez… ?Eu dormia dentro do guarda-roupa da casa dele lá na Vila Carioca, em São Paulo?, conta seu Antonio Ferreira, outro primo, que só agüentou a vida da cidade grande por 14 dias, nos anos 70. Há alguns meses, mandou um recado para o Silva famoso: precisava de dinheiro para reformar a ?casa de farinha?. ?Lula me mandou um cheque de R$ 1.900?, conta.
As ausências de Lula são motivo de zombaria entre os garanhunenses. ?Ele diz que é daqui, mas nunca aparece?, brinca Mário César Alves Barbosa, eleitor de Serra e proprietário de uma espécie de Lojas Americanas local, o maior empregador privado do município. Mas a família… A família sempre perdoa. ?Ele é muito preocupado para perder tempo?, explica Aldaísa Ferreira, cuja mãe era irmã da mãe de Lula. ?E aqui tem muito pouco voto.? Sim, são apenas 70 mil eleitores, nesta cidade de 120 mil habitantes. E pior: todos os anos, Lula perdia em plena terra natal. Mas alguma coisa está mudando. A Garanhuns que Lula deixou para trás em 1952 cresceu tanto que foi dividida em dois municípios. A casa onde Lula nasceu virou pó. Foi coberta por um areião branco. Do armazém onde ele pousou três dias, esperando pela viagem de pau-de-arara, só restam algumas paredes. Está à venda. Mas talvez o maior sinal de mudança seja que, pela primeira vez na história, Lula ? com 34.985 votos, 69,9% dos válidos no segundo turno ? ganhou uma eleição em casa.