DINHEIRO ? A nova reunião da OMC vai dar certo?
RUBENS RICUPERO ?
Estou muito otimista. Na última reunião preparatória, em Cingapura, vários países se comprometeram com a derrubada de barreiras na área agrícola e com a necessidade de mais proteção ao meio ambiente. São posições que o Brasil vem defendendo e que alcançam cada vez mais repercussão. Em Doha poderá ser dado um bom passo à frente no sentido do livre comércio. A recente crise que abateu o mundo terá um importante peso sobre as negociações. Está claro para todos que é preciso rever muitas coisas. E todos concordam que o comércio é o elemento de estímulo. É preciso combater o protecionismo.

DINHEIRO ? Muitos especialistas alertam que se a rodada não sair o Brasil não terá alternativa a não ser buscar mercados fora da Alca e da União Européia. O sr. concorda?
RICUPERO ?
Eles têm uma certa razão, mas minha impressão é que a rodada vai começar. As repercussões às posições brasileiras são cada vez mais amplas. Não estamos falando só por nós.

DINHEIRO ? Mas não se teme que, em virtude dos ataques nos EUA, ocorra uma nova onda mundial de xenofobia?
RICUPERO ?
Não acredito nisso. Há suficiente realismo dos países, que se reflete na forma habilidosa como os americanos têm conduzido a coalizão. Conheço o secretário de Estado Colin Powell, um homem de qualidades extraordinárias, com uma cabeça estratégica muito aguda. Pessoas como ele fazem os EUA compreenderem perfeitamente os perigos da situação atual. Por isso, trabalham para que avanços ocorram e para evitar a impressão de que são contra os árabes.

DINHEIRO ? Até que ponto os EUA terão interesse em tocar acordos regionais como a Alca na crise atual?
RICUPERO ?
Eles terão muito interesse. Faz parte da estratégia de coalizão. Não se pode ignorar que a Alca é a área na qual acumulam grandes saldos comerciais, onde têm superioridade absoluta e onde a competição não os toca de perto.

DINHEIRO ? Os ataques terroristas voltaram a mostrar o excessivo grau de vulnerabilidade externa do Brasil. Como chegamos a esse ponto?
RICUPERO ?
Foram dois grandes erros: a valorização excessiva da moeda, que foi sustentada por muito tempo e que começou quando eu ainda era ministro (da Fazenda). Eu defendia que a valorização durasse apenas algumas semanas, mas logo nos primeiros dias houve um ingresso muito grande de recursos do exterior, a moeda valorizou e isso deu um impacto psicológico positivo. Deixei o ministério logo depois, mas infelizmente permitiu-se que essa situação durasse por cinco anos. O segundo erro, que está na origem do primeiro, era a crença de que os déficits comerciais gerados pela moeda valorizada e os déficits de conta corrente iriam ser facilmente cobertos pelo ingresso de capitais de fora pelo tempo necessário para corrigirmos os problemas que ainda afetavam as exportações brasileiras.

DINHEIRO ? Não foi isso que aconteceu…
RICUPERO ?
Estão descobrindo que os mercados financeiros não são tão garantidos como se dizia, uma vez que de 1996 para cá tem diminuído bastante o volume financeiro que vai para os mercados emergentes.

DINHEIRO ? Como foi essa queda?
RICUPERO ?
O Institute of Internacional Finance publicou recente relatório onde mostra que 1996 foi o ano em que os recursos financeiros foram mais volumosos para os mercados emergentes. Foram US$ 336 bilhões. No ano passado, que foi bom para a economia mundial, com o comércio crescendo a 13% ao ano, esse volume era de apenas US$ 167 bilhões. Para 2001, calcula-se que os recursos devam ficar em US$ 106 bilhões. Já os investimentos diretos, nós, da Unctad, estimamos que vão cair 40%. E a maior queda será nos países industriais, por conta da redução das fusões e aquisições de empresas. Para o Brasil, a queda será de 6%.

DINHEIRO ? E onde esse impacto
será mais sentido?
RICUPERO ?
A redução dos recursos financeiros, dos empréstimos, lançamentos de títulos e financiamento de bolsa vai afetar o total de recursos que o Brasil necessita para cobrir o seu déficit. Para rolar a dívida e cobrir o déficit de conta corrente, o Brasil necessitará de quase
US$ 60 bilhões. Uma parte importante
vinha desses investimentos, principalmente os diretos. Mas agora tudo indica que
eles vão cair.

DINHEIRO ? O sr. disse, recentemente, que faltou ajuda financeira dos países ricos, por meio do FMI, aos países em desenvolvimento quando a crise estourou. Por quê?
RICUPERO ?
Faltou empenho dos países ricos em assegurar a liquidez dos países emergentes. Nos países ricos, os bancos centrais injetaram somas gigantescas de dinheiro, centenas de bilhões de dólares, para garantir a liquidez depois dos atentados. Mas nada foi feito em países como o nosso.

DINHEIRO ? São erros de avaliação?
RICUPERO ?
Os mecanismos de avaliação desses organismos ainda são muito precários. E quando existem não há agilidade. É o que está acontecendo agora. Por que os recursos para mercados como o do Brasil estão caindo? É por falta de liquidez. Em momentos como esse deveria se assegurar liquidez não só para os EUA, para a Inglaterra, para a França, mas também para a Argentina, para a Turquia.

DINHEIRO ? O que poderia ter sido feito?
RICUPERO ?
É possível assegurar liquidez de muitas maneiras. O FMI poderia, por exemplo, garantir que se houver um problema nos mercados privados, vai dar ajuda aos países em dificuldades com os créditos necessários e até mesmo com a emissão dos direitos especiais de saques.

DINHEIRO ? Mais ajuda do que já deram?
RICUPERO ?
Sim, porque os ataques criaram uma situação nova. A essa altura, nos bastidores, já devem considerar essa possibilidade. Não se pode esquecer que se uma coisa corre mal na Argentina, pode atingir o Brasil. Nesse caso, vamos precisar de ajuda, pois uma crise financeira no Brasil teria o mesmo efeito de um novo ataque terrorista nos EUA. Há o perigo do risco sistêmico.

DINHEIRO ? Mas não é ruim para a imagem do Brasil ter que recorrer ao FMI cada vez que acontece uma crise?
RICUPERO ?
Esse pessoal do Banco Central erra quando defende a tese de que essa é uma medida passageira. O que temos de fazer quando a situação da economia melhorar é reduzir a dependência externa. E o caminho é aumentar as exportações, substituir as importações, aumentar o saldo comercial, como o Sérgio Amaral está fazendo. Temos de diminuir o déficit de conta corrente para menos de 2% do PIB. Hoje é de quase 5%. É a história clássica do banqueiro, que não empresta dinheiro a quem tem necessidade.

DINHEIRO ? A balança comercial, então, é hoje o calcanhar-de-aquiles da economia?
RICUPERO ?
A atual política é correta. Só que deveria ter sido iniciada no momento da desvalorização do real, em 1999, pois aí teríamos pego a grande recuperação da economia americana. O ano 2000 foi o mais extraordinário do comércio mundial.

DINHEIRO ? Mas só arrumar balança comercial não resolve o problema da dependência externa.
RICUPERO ?
Resolver a questão das exportações é uma medida de emergência. Mas reduzindo a dependência de financiamento externo, gradualmente teremos condições de adotar uma política de juros mais razoável, que favoreça o aumento da produção, e, com isso, ter um crescimento calcado na demanda interna, que está reprimida por causa dos juros. Se melhorarem as condições de acesso ao crédito, aumentaremos ainda mais o potencial do mercado brasileiro, que já é imenso, como ocorre com a China e a Índia. São dois países que crescem em grande parte na base da demanda interna.

DINHEIRO ? O governo diz que não tem espaço para reduzir os juros. Está pecando pelo excesso de zelo?
RICUPERO ?
Um país que depende desesperadamente de recursos externos tem que aumentar os juros para oferecer algum atrativo aos investidores. E os juros aumentam na mesma proporção do risco do país.

DINHEIRO ? Mesmo nessa onda de desaceleração da economia mundial, há espaço para o Brasil atrair capital estrangeiro?
RICUPERO ?
Pode ser que nos próximos meses tenhamos surpresas desagradáveis em relação à demanda de importações. Mas há expectativa razoável que as medidas de estímulo adotadas pelos ricos vão acelerar de novo o crescimento. Se for certo o que diz o secretário do Tesouro americano, que o crescimento vai recomeçar no fim do primeiro trimestre de 2002, em quatro ou cinco meses vamos sentir os benefícios dos pacotes anticrise em todo o mundo.

DINHEIRO ? O impacto da atual guerra não tem sido apenas econômico, mas geopolítico também. Como o sr. vê isso?
RICUPERO ?
Não acho correto usar a expressão guerra. O que temos hoje é uma guerra fria, uma grande campanha contra o terrorismo. Mas é certo que o conflito vai provocar grandes realinhamentos geopolíticos. Vejo uma aproximação dos EUA com a Rússia, com a China, e até o Irã por conta da crise. Embora isso já estivesse ocorrendo antes dos ataques, era algo tímido, pois a desconfiança era grande. Agora, essas relações sofrem uma mudança qualitativa.

DINHEIRO ? Como se dá essa mudança?
RICUPERO ?
O presidente da Rússia deu aos americanos a possibilidade de usar as bases contra o parecer do seu ministro da Defesa. É um fato extraordinário. Isso nunca havia acontecido em 80 anos de história. Vivemos a reincorporação da Rússia como um parceiro nos esquemas de segurança do planeta. Outro fato da maior importância é a diminuição da tensão com a China. No início do ano parecia que a China e os EUA rumavam para um conflito. Existe até a possibilidade de se encontrar uma solução para o problema entre Israel e a Palestina, que se arrasta há mais de 50 anos.

DINHEIRO ? A crise recoloca o Estado no centro dos debates?
RICUPERO ?
Quem está salvando a economia mundial não é o mercado, mas o governo americano com um pacote tipicamente keynesiano. É até irônico que um governo republicano coloque toda a força do Estado e regulamente setores inteiros. É justamente o contrário do que fez o Ronald Reagan em sua administração, quando desregulamentou aeroportos, controle aéreo, normas e outras restrições. É outro mundo.