A crescente importância que o tema da felicidade vem adquirindo no contexto das organizações culminou com o aparecimento do cargo de chief of happiness officer, ou gestor executivo de felicidade. Embora não esteja diretamente conectado a esse tema, a notável superestimação da ideia de ESG enquanto panaceia para resolução de todos os problemas globais e existenciais da modernidade é algo que merece ser melhor compreendido. .

A predominância do trabalho, da vida profissional, na experiência existencial do ser humano contemporâneo não é um fenômeno inédito. A “profissionalização” da vida está relacionada com o desenvolvimento do capitalismo, tal como apontada por Marx há quase dois séculos e estudada mais profundamente por teóricos como Stephen Marglin e Byung Chul-Han, mais recentemente. No contexto da revolução digital, entretanto, esse fenômeno evoluiu para uma situação que chamaria de abdução laboral da existência. O trabalho profissional nos absorve de tal forma, seja do ponto de vista físico, temporal ou psicológico, que hoje estamos, enquanto seres humanos, praticamente reduzidos ao cargo, função e “entrega” que realizamos. Nosso status ou condição profissional contaminou e, de certa forma, absorveu nossa existência, determinando nossa forma de sentir, de pensar e de agir, não só no “ambiente” de trabalho (coloco entre aspas pois, afinal, como se poderia hoje delimitar o ambiente de trabalho?), mas na vida como um todo. O léxico empresarial domina nossa linguagem em todos os âmbitos, e seus procedimentos são aplicados em todas as dimensões da nossa vida: na relação com nossos parentes, parceiros amorosos, filhos, amigos e até conosco mesmos.

A crescente pandemia de infelicidade, manifestada sintomaticamente nos atuais transtornos psíquicos, preocupa a todos, sobretudo os empresários e gestores que constatam seu efeito deletério no âmbito da produtividade e da eficiência. Identificado o problema, estabelecido o diagnóstico, cabe então enfrentá-lo: se os colaboradores estão infelizes, é preciso dar-lhes felicidade; estudar os meios e desenvolver “ferramentas” para “promover” a felicidade. O problema é que na base de toda essa “clínica” empresarial há um preocupante equívoco antropológico. Promover a felicidade no e por meio do trabalho, propiciando recursos psicoterapêuticos e de mentoria, a fim de ajudar o triste colaborador a encontrar equilíbrio, uma meta, um propósito, não deixa de ser uma atitude louvável e até certo ponto efetiva, numa instância mais imediata. Entretanto, tal abordagem não estaria ela mesma contribuindo antes para o agravamento da causa mais profunda da infelicidade, justamente por partir da concepção do ser humano como um ser instrumental, criado para encontrar sua felicidade no trabalho e só? Não seria muita pretensão achar que encontrando sua meta, seu propósito, seu equilíbrio, enfim, sua “felicidade” no trabalho, a felicidade existencial estaria garantida? Há aqui, a meu ver, um flagrante equívoco, não só técnico, mas filosófico.

Diante disto, então, o que fazer? Abandonar o colaborador à sua própria sorte? Consolá-lo, informando-o que a felicidade é algo inatingível, pelo menos no âmbito do trabalho, e que a empresa não pode e não deve se comprometer com essa busca? Certamente não, pois o remédio para o otimismo ingênuo não é o pessimismo cético. O que proponho é uma revisão crítica da concepção de vida e felicidade que vem norteando as propostas humanizadoras nas empresas. Proponho, antes de tudo, um olhar mais abrangente sobre o que é ser humano e qual o papel do trabalho na sua existência e felicidade.

Dante Gallian é doutor em História pela USP, coordenador do Laboratório de Leitura da Escola Paulista de Medicina e autor de Responsabilidade humanística — uma proposta para a agenda ESG (Poligrafia Editora)