14/01/2011 - 7:00
DINHEIRO ? O Brasil vem tentando fazer uma reforma fiscal há duas décadas e não consegue. Por que isso é tão difícil?
VITO TANZI ? Discutir imposto nunca é fácil, pois não é só uma discussão técnica, mas também uma discussão política. Trata-se de saber quem ganha e quem perde, algo que sempre provoca muita controvérsia.
DINHEIRO ? Há um consenso de que o Brasil cobra demais e entrega pouco em troca.
TANZI ? Reclamar do imposto é um esporte mundial, bem mais popular que o futebol. Se a sociedade estiver convencida de que o dinheiro arrecadado é bem gasto, o imposto é tolerável mesmo que as alíquotas sejam elevadas. No entanto, a tributação no Brasil é comparável a dos países desenvolvidos. Se você analisar os sistemas fiscais da França e da Suécia, que estão entre os países que mais cobram imposto na Europa, e descontar os tributos cobrados sobre tabaco, carros e gasolina, a faixa de arrecadação em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) vai ficar em 36%, igual a do Brasil. Cobrar mais de um terço do PIB é muito para o nível de renda brasileiro.
“A crise fez os países europeus cortar gastos, mas eles também terão de elevar impostos”
Portugueses protestam contra corte de despesas
DINHEIRO ? Esse percentual pode cair?
TANZI ? É pouco provável, pois desde os anos 1930 os governos só crescem e, claro, isso faz com que cobrem mais impostos. A arrecadação avançou muito nas últimas décadas. No início do século passado, um país como a Suécia cobrava em média impostos equivalentes a 15% do PIB. Hoje esse percentual chega a 50% e seria maior ainda se os suecos não tivessem feito uma pesada reforma tributária há alguns anos. A arrecadação nos países desenvolvidos cresceu muito a partir da década de 1960, quando as teorias econômicas que defendiam mais intervenção do Estado ganharam força. A arrecadação parou de crescer por um tempo com a onda de privatização do governo Reagan nos anos 1980 e 1990, mas agora ela está avançando de novo. A exceção são os Estados Unidos, que arrecadavam 30% do PIB há 50 anos e mantêm esse percentual até hoje.
DINHEIRO ? Além de cobrar mal, outra reclamação recorrente é de que o sistema tributário brasileiro é confuso e burocrático. O sr. concorda?
TANZI ? Esse também é um fenômeno mundial, não é exclusividade brasileira. As economias tornam-se mais complexas e os impostos acompanham esse movimento. Há dez anos, por exemplo, não havia comércio online. A legislação tributária americana tornou-se tão complexa e tão detalhada que o conjunto das normas e regulamentos fiscais poderia alcançar a impressão de 70 000 páginas. Dá para encher uma estante de tamanho médio, mesmo usando papel-bíblia. Quanto mais complexo o sistema, mais trabalhoso de operar e menos compreendido ele será pelos contribuintes. No caso brasileiro, embora não seja um especialista, eu diria que o principal problema está no imposto sobre valor agregado, que é arrecadado dos Estados.
DINHEIRO ? O ICMS?
TANZI ? Isso. Esse é um imposto de valor agregado, é a forma mais comum de tributar o consumo. Em geral, ele é pago diretamente pelo consumidor no momento da venda, mas no Brasil essa tributação não está clara. Na maioria dos países, esse imposto equivale a 10% da arrecadação, mas no Brasil é muito mais importante, equivale a 25% da receita do setor público. E é onde é possível fazer mais mudanças para melhorar a distribuição.
DINHEIRO ? Quais mudanças?
TANZI ? Aqui, a discussão é quem paga, se o produtor ou o consumidor. Há outros focos de discórdia, uma vez que o imposto é estadual. Uma maneira de resolver a disputa seria transformar esse tributo em um imposto federal, com uma alíquota unificada e válida para todo o País, e aumentar a base de arrecadação. A distribuição poderia ser feita segundo dois critérios. Uma parte do dinheiro seria dividida como ocorre hoje, e a outra seria dividida segundo os critérios populacionais. Os Estados mais populosos receberiam mais dinheiro.
“A arrecadação parou de crescer nos anos Reagan, mas logo voltou a avançar”
Ronald Reagan, presidente dos EUA (1981-1988)
DINHEIRO ? Como isso funcionaria?
TANZI ? Suponha que a arrecadação do imposto atingisse 10% do PIB. Isso poderia ser dividido assim: 3% para o governo federal, 4% para os Estados, usando a metodologia de distribuição que vale hoje, e os outros 3% também, mas segundo a população de cada um deles.
DINHEIRO ? Quais as vantagens?
TANZI ? Ao vincular o imposto à população, isso beneficiaria os Estados mais pobres e os mais populosos, que hoje são os mais prejudicados com o fato de o ICMS ser cobrado na origem. Estruturando o imposto dessa maneira, você aumentaria a eficácia da fiscalização, acabaria com as disputas entre os Estados e resolveria problemas de difícil solução, como a compensação tributária das exportações, por exemplo. Outra vantagem é que essas mudanças tornariam o imposto mais simples.
DINHEIRO ? O sr. acha isso possível no curto ou no médio prazo ?
TANZI ? Não tenho grandes ilusões. Processos como esse mexem profundamente com as finanças públicas e com a vida das pessoas, e por isso eles são muito difíceis de se conduzir politicamente. Mas essa dificuldade não é uma exclusividade brasileira. Veja o caso da Europa, que está tendo de enfrentar sérios problemas fiscais devido à crise.
DINHEIRO ? Como a crise afetou a situação fiscal na Europa e nos Estados Unidos?
TANZI ? Profundamente. Os países em situação mais crítica, como Portugal, Grécia e Espanha, estão cortando gastos, mas terão de elevar os impostos, o que é ruim em momentos de crise. A Irlanda também precisará cortar, mas será necessário elevar mais as taxas para recompor a arrecadação.
DINHEIRO ? Um novo ?efeito Tanzi?, mas em países desenvolvidos?
TANZI ? Prefiro dizer que são os efeitos colaterais da concentração de renda. Nos últimos anos, a renda das famílias nos países desenvolvidos se concentrou nos mais ricos. Além disso, os lucros dos bancos aumentaram mais do que os do setor produtivo. Nos anos 1940, a fatia dos lucros totais da economia que era auferida pelos bancos era de 5%, e hoje está ao redor de 40%. A concentração de renda em um único setor fez o governo arrecadar muito mais, e arrecadar muito mais depressa, o que gerou pesados efeitos colaterais.
DINHEIRO ? Quais?
TANZI ? A aceleração da arrecadação tornou os planejadores estatais excessivamente confiantes. Eles passaram a acreditar que sempre seria possível fechar as contas. Quando a bolha do setor financeiro explodiu e os bancos passaram a perder dinheiro, essa receita tributária desabou, e agora será necessário cortar gastos.
DINHEIRO ? O que esperar do futuro em termos fiscais?
TANZI ? Acredito que uma das tendências será, sempre que possível, tentar simplificar as estruturas tributárias. Complexidade gera problemas. Um deles é que abre espaço para confusão fiscal e dificulta ao próprio governo a tarefa de arrecadar. Outro problema é que os contribuintes acabam se atrapalhando e pagam a mais ou a menos, ainda que não haja intenção de sonegar ? o que nem sempre é o caso, aliás.
DINHEIRO ? Simplificar ajuda os governos, além dos contribuintes?
TANZI ? Sem dúvida. Alguns especialistas defendem a alíquota única, a chamada flat rate, em que todas as atividades e todos os contribuintes pagam o mesmo percentual independentemente da renda. Não sou favorável, pois acho que isso é muito regressivo, ou seja, prejudicial a quem ganha menos. Aplicar a mesma alíquota a um professor e a um executivo bilionário é uma injustiça muito grande. Mesmo assim, é possível facilitar as regras e tornar o sistema mais equânime e transparente.
DINHEIRO ? Algum exemplo a seguir?
TANZI ? Voltemos ao caso sueco. Nos anos 1990, os suecos pagavam os impostos mais altos da Europa, o que acabava comprometendo a competitividade da economia. Com a privatização, eles cortaram gastos e redesenharam a estrutura fiscal. A maior mudança foi que eles deixaram de tributar os rendimentos das aplicações financeiras como salários. O governo percebeu que o percentual ganho no mercado financeiro era marginal na renda das famílias. Por isso, em vez de aplicar diversas alíquotas, o governo estabeleceu um percentual linear de 30%, sem deduções. Isso gerou outra vantagem, que foi reduzir o imposto sobre o capital, algo que é essencial.
DINHEIRO ? Muitos economistas sugerem exatamente o contrário, que se aumente a tributação sobre o capital.
TANZI ? Hoje, a maioria dos países precisa trazer capital, especialmente o capital produtivo, e não afastá-lo. O capital financeiro é móvel e migra para onde há menos impostos. Assim, se um país taxa excessivamente seus investimentos, ele vai espantar os investidores e terá de praticar juros muito altos para manter-se atraente no mercado.