Infelizmente, o grande Millôr Fernandes não está mais aqui embaixo. Criador da expressão “máfia de branco”, o guru do Méier teria grandes motivos para indignar-se com a categoria – não toda, evidentemente – que, liderada por suas associações de classe e conselhos, tem tido um comportamento belicoso em relação ao programa Mais Médicos, do governo federal. Essa oposição à contratação de médicos estrangeiros para atender as populações carentes das periferias e municípios do interior do País chegou ao paroxismo na segunda feira 25, em Fortaleza. 

 

57.jpg

 

A fotografia do médico cubano Juan Delgado, um negro forte de 46 anos, obrigado a atravessar, juntamente com seus colegas que participavam de um treinamento, por um corredor polonês formado por patricinhas e mauricinhos de jaleco, em meio a xingamentos (“escravos” e “incompetentes” eram os mais entoados), revela a quanto pode chegar a combinação de corporativismo, sectarismo político e má-fé. A reação ruidosa dessa moçada que exerce sua profissão à beira das praias da capital cearense é uma ode à hipocrisia de parte de gente que fez o juramente de Hipócrates e se esqueceu dos compromissos com a sociedade e com o bem-estar das pessoas. 

 

O alarido dos que são contra a vinda de médicos estrangeiros – dos cubanos, sobretudo – é uma forma de esconder uma verdade: embora tenham ocorrido alguns avanços nas últimas décadas, como a redução das taxas de mortalidade infantil e o aumento da expectativa de vida, até agora fomos incapazes de resolver as graves mazelas na área da saúde. Nada menos de 700 municípios, o equivalente a 15% do total, não contam com um médico sequer para a sua população. Só para dar conta das necessidades mais urgentes, é preciso a contratação “para ontem” de 13 mil médicos para atender 2,9 mil municípios no País. No início do ano, mesmo oferecendo salários de R$ 8 mil, o governo conseguiu recrutar menos de um terço do total necessário. 

 

Ou seja: embora tenhamos mais de duas centenas de faculdades de medicina, exibimos uma das mais baixas ofertas de profissionais per capita: apenas 1,8 médico por mil habitantes, contra 2,3 na Argentina, 2 no México e 6,7 em Cuba, que supera largamente países desenvolvidos como os EUA e a Alemanha. Faltam médicos, assim como faltam hospitais, centros de saúde e ambulatórios. Na verdade, a importação de médicos deveria ser considerada uma medida de emergência diante da calamitosa situação da saúde no Brasil. Eles jamais poderiam ser considerados como concorrentes pelo pessoal que clinica no asfalto ou que ocupa as salas refrigeradas dos CRMs. Simplesmente, porque essa turma não vai nem amarrada para um posto de saúde de periferia ou para um município do interior do Maranhão (0,58 médico por mil habitantes) ou do Pará (0,77), como ficou demonstrado na baixíssima adesão ao Mais Médicos.

 

Não faltam alegações para a condenação da contratação de médicos estrangeiros. Elas vão de um suposto trabalho escravo até a falta de qualificação dos profissionais que estão chegando (com relação aos cubanos, é só pedir o testemunho dos governos de mais de 80 países que já importaram profissionais da ilha).Mas a mais bizarra delas é a existência de uma suposta barreira da língua, como impeditivo para um desempenho de excelência. Caso isso fosse uma verdade absoluta, como explicar, então, o trabalho dos pediatras que atendem centenas de milhares de crianças que nascem todos os anos no Brasil e não entendem uma palavra de português, espanhol ou javanês?