14/02/2025 - 6:49
Livro didático usado em escolas alemãs reforça estereótipos de pobreza do Brasil; mobilização de brasileiros levou editora a se desculpar e revisar edição digital.”Olá, meu nome é Marco. Eu vivo no Rio de Janeiro. Eu não vou à escola. Pela manhã, procuro restos de comida nas latas de lixo. Eu gostaria de me tornar um jogador de futebol profissional.”
É assim que um livro didático usado em escolas da Alemanha retrata um garoto brasileiro fictício. Na mesma lição, uma garota alemã diz gostar de tocar violão depois da aula e querer ser educadora. Um menino do Quênia tem o pai cozinheiro, a quem ajuda no trabalho depois da aula, e quer ter a mesma profissão que ele quando crescer. Uma garota japonesa estuda o dia inteiro para ser a melhor aluna e sonha em ser advogada.
Diante do espanto dos colegas de uma escola pública no centro de Berlim, um aluno brasileiro de 11 anos não soube como reagir. Ainda que não pudesse negar que existam situações como a retratada pelo livro usado em sala de aula, queria ter dito que aquele não era o melhor jeito de apresentar o seu país.
“Ele chegou em casa e contou que não tinha vocabulário para explicar para eles que isso não é o Brasil, ou que o Brasil não é só isso”, diz o pai, Renato Galisteu. Eles se mudaram de São Paulo para Berlim há três anos, portanto o idioma alemão ainda é um desafio na rotina da família.
O nome do livro é ABC der Tiere (ABC dos Animais, em tradução livre), voltado para o quarto ano do ensino fundamental. Outras edições, disponíveis também em versão online, vão além ao dizer que o menino também limpa para-brisas de carros, fala “Buenos dias” e sonha em se tornar um jogador como o Messi – que é argentino.
A mãe do aluno brasileiro decidiu compartilhar a imagem do trecho controverso em um grupo de WhatsApp de mães brasileiras em Berlim. A enorme mobilização que se formou em seguida nas redes sociais levou a editora, rapidamente, a se comprometer com uma revisão e fazer alterações na versão disponível em seu site, na quinta-feira (13/02). Em vez de catar lixo, agora Marco gosta de esportes – e segue querendo ser jogador de futebol.
Na nova versão, a menina alemã continua tocando violão e querendo ser educadora, e a japonesa se mantém dedicada ao propósito de um dia se tornar advogada. O menino do Quênia não ajuda mais seu pai no trabalho depois da escola – em vez disso, “a família toda come junto”.
Reforçando estereótipos
“Nunca foi nossa intenção reforçar estereótipos negativos ou transmitir um retrato unilateral. Lamentamos que isso tenha acontecido”, disse a editora Mildenberger em nota publicada em seu Instagram. “Gostaríamos de pedir desculpas sinceras à comunidade brasileira e a todos os leitores afetados. Aceitamos esse feedback e revisaremos o livro didático”, completou.
A Embaixada do Brasil em Berlim publicou na quinta uma nota de repúdio à propagação de “imagem distorcida e preconceituosa” sobre as crianças do Rio de Janeiro e do Brasil.
“A existência de elevada taxa de inequidade é um problema reconhecidamente grave no Brasil, que vem sendo enfrentado por sucessivos governos brasileiros ao longo das últimas décadas”, diz, destacando que a taxa de escolarização de crianças entre 6 e 14 anos é de 99,4% no país, de acordo com a Pnad de 2023.
“A Embaixada do Brasil em Berlim lamenta a abordagem insensível e pouco informada da editora Mildenberger no livro em questão. Para além da dificuldade em entender como texto dessa natureza possa ter a pretensão de ser didático, preocupa o impacto em crianças de sua exposição a estereótipos e preconceitos sobre outros países.”
A embaixada afirmou que entrará em contato a editora e autoridades alemãs para possíveis providências.
O livro é distribuído em toda a Alemanha, exceto no estado Baviera, e a edição mais antiga encontrada pela reportagem é de 2016. Há também uma edição que circula na Áustria – também disponível online.
Quais os critérios para escolha de livros didáticos na Alemanha?
O livro apresenta muitas dimensões de desigualdade – classismo, racismo, homogeneização de um povo – aponta Olenka Bordo Benavides, especialista em proteção contra discriminação em ambiente escolar. Ela é chefe do gabinete de contato da RAA Berlin, uma organização independente voltada para justiça educacional.
“Nós fazemos e repetimos o que aprendemos, também em casos de discriminação. O classismo, o racismo que se reproduz e que todos aprendemos, nós internalizamos. Por isso não me surpreende que, em países que foram colonizados, temos internalizada a perspectiva de que, para ter sucesso, temos que ser como europeus brancos”, diz Bordo.
Na Alemanha, o conteúdo das aulas segue a estrutura curricular definida em lei, mas professores e escolas são livres para selecionar e compilar seus próprios materiais didáticos dentro dessa programação e de alguns critérios, como a proibição à discriminação.
“Levamos as alegações de discriminação muito a sério; elas podem ser analisadas e discutidas com o professor da classe ou com a direção da escola e, em última instância, também com a autoridade supervisora da escola. Há também um oficial antidiscriminação (…) que pode ser contatado”, afirmou à DW a Secretaria de Educação de Berlim, por meio de sua assessoria de imprensa.
Na prática, contudo, não há controle efetivo desses materiais didáticos, tampouco expertise para fazer essa análise, aponta Bordo.
“As pessoas que estão sentadas nesses lugares não têm a experiência, nem o profissionalismo, nem a sensibilidade necessários em relação a questões discriminatórias. Assim, o conhecimento discriminatório internalizado é repetido até mesmo nas leis”, afirma.
Para Bordo, é preciso agir em várias frentes, incluindo treinamentos adequados contra discriminação e uma revisão mais cuidadosa dos materiais educativos. Outra recomendação é estabelecer centros de reclamação independentes, como o RAA, a quem estudantes e famílias, assim como professores, possam recorrer.