A quantidade de atos de violência – simbólica e real – na campanha eleitoral deste ano afeta sua qualidade, diferenciando-a de todas as eleições desde a redemocratização. A sucessão de ameaças e agressões se tornou natural por meio da identificação do adversário político como inimigo.

Essas são algumas das características verificadas nesta eleição. A condução do debate político por grupos e pessoas radicalizadas culminou em episódios como os recentes assassinatos registrados em Foz do Iguaçu (PR) e em Confresa (MT) – onde o apoiador de Bolsonaro Rafael Silva de Oliveira, de 22 anos, matou o petista Benedito Cardoso dos Santos, de 44 anos, e ainda tentou decapitá-lo.

Não se estaria diante de fatos isolados, mas de uma escalada do ódio que as instituições não contiveram em seu início. A organização internacional Human Rights Watch repudiou ontem o assassinato em Confresa e afirmou que “todos os candidatos deveriam condenar qualquer ato de violência política”.

O Estadão ouviu especialistas em ética, ciência política e direitos humanos para compreender o fenômeno reforçado pelo delito em Mato Grosso, cujo autor responderá por homicídio duplamente qualificado – por motivo torpe e cruel. “A intolerância não deve e não será admitida, sob pena de regredirmos aos tempos de barbárie”, escreveu o juiz Carlos Eduardo Pinho Bezerra de Menezes, ao manter o criminoso preso

O assassinato aconteceu no dia 7 de Setembro. Durante os últimos dias, políticos fizeram declarações que não contribuem para desanuviar o clima da eleição. Ainda que conflitos e contradições sejam parte da democracia, o meio pacífico deixou de ser a resolução da diferença em discursos de autoridades.

O deputado estadual e candidato à Câmara Delegado Cavalcante (PL-CE), por exemplo, afirmou que, em caso de derrota de Bolsonaro em outubro, a vitória viria “na bala”. Já o presidente reiterou que sua luta é a do “bem contra o mal” e defendeu “extirpar a esquerda” durante seus discursos recentes. Da mesma forma, nada contribui para a redução do quadro de intolerância o candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, relacionar os apoiadores de Bolsonaro a membros do grupo supremacista branco Ku Klux Klan.

Em São Gonçalo, no Rio, um apoiador de Bolsonaro foi agredido nesta sexta-feira, 9, por militantes petistas. Rodrigo Duarte passava na frente do Clube dos Tamoios, onde o candidato petista participaria de um evento com um carro com adesivos que mostravam o ex-presidente vestido de presidiário. Militantes petistas bateram no carro. Duarte teve o telefone celular arrancado de sua mão e foi agredido.

‘Risco’

Dois dias antes das manifestações pró-Bolsonaro na data do bicentenário da Independência, o ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin suspendeu trechos de decretos que afrouxavam as regras para a compra de armas e munição. Na decisão, escreveu que o início da campanha “exaspera o risco de violência política”.

Aluno da pensadora Hannah Arendt, o ex-chanceler e professor da USP Celso Lafer disse, que nas eleições passadas, desde a redemocratização, e ainda na distensão do regime militar, as relações políticas eram caracterizadas pela dinâmica entre adversários. “Ela podia ser mais incisiva ou intensa, mas não passava pela intimidação da violência.”

As instituições teriam fracassado para conter a violência política? Lafer afirmou que as medidas tomadas pelo Tribunal Superior Eleitoral, como limitar o porte de arma no dia das eleição, são medidas que defendem o estado democrático de direito.

Para José Álvaro Moisés, a violência política não visa só destruir quem pensa ou tem características diferentes. Ela também pretende estabelecer um clima de medo para paralisar opositores. “É a contraposição da ideia da política baseada na lei”, disse o cientista político.

Lafer aponta o dedo para a maneira pela qual Bolsonaro se comporta na esfera pública. O ex-chanceler no governo Fernando Henrique Cardoso vê nela inspiração nas concepções do pensador alemão Carl Schmitt. “A polícia não é uma relação entre adversários, mas uma relação de amigo e inimigo, que eu conduzo com o fim de destruir o inimigo por meio da intimidação da palavra e da violência.” Lafer e outros temem uma escalada.

Para ele, o ímpeto com o qual Bolsonaro procurou disseminar o uso de armas, contrariando a legislação anterior, facilita que a violência ocorra na sociedade e assuma as características políticas. Em Crises da República, Arendt afirmou que a violência destrói o poder e seu uso “compromete o poder no âmbito de uma democracia”.

Por isso que essa eleição seria uma eleição com características únicas e que se diferencia, inclusive da eleição de 2018 em que Bolsonaro foi eleito, porque, segundo Lafer, ela se faz agora a partir do acúmulo de recursos de que ele dispõe como presidente. Moisés considera que, desde 2018, há um clima de naturalização da violência, que se acentuou neste ano para permitir aos contendores usar esse mecanismo para fazer valer a sua vontade. “Para evitar o que Thomas Hobbes chamava de guerra de todos contra todos e, sabendo que não se pode ganhar sempre, concorda-se em participar do processo em que nem sempre se ganha, mas preserva o clima de sobrevivência, união e busca de consenso”, disse.

Para o professor de ética Renato Janine Ribeiro – que ocupou a pasta da Educação no governo de Dilma Rousseff (PT) -, a resposta não está apenas no presente, mas em como as instituições se comportaram diante da história. “Em grande parte o que vivemos é fruto da leniência com que as instituições e a própria mídia trataram o atual governante. Ele devia ter sido punido quando ameaçou por bombas e quartel e defendeu fuzilar Fernando Henrique.”

Lafer ressalta que o principal suporte desse fenômeno da violência é a retórica. O ex-chanceler a diferencia do “nós e eles” de Lula, que não usa palavras como “metralhar” e “eliminar”.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.