O executivo Eliezer Batista da Silva resolveu falar. É um fato raro. Avesso a aparições públicas, sua discrição é inversamente proporcional à sua importância na história empresarial brasileira. Considerado o pai da Vale do Rio Doce, Eliezer, como gosta de ser chamado, é caso raro da combinação de uma vigorosa capacidade de ação com uma profunda visão sobre os destinos do mundo e do País. Trata-se, ao mesmo tempo, de um executivo e de um intelectual, que nunca separa uma coisa da outra em seu dia-a-dia. ?Jamais tomei qualquer decisão em minha vida sem ter um conceito como base?, diz ele. ?A teoria sem ação é inócua, e a ação sem teoria é desastrosa.? Foi esse princípio que norteou os mais de 50 anos de atividade profissional de Eliezer. Nesse período, ele foi um participante incansável da história empresarial brasileira. Seu nome está intimamente ligado a uma das maiores empresas nacionais e símbolo do desenvolvimento do País, a Vale do Rio Doce. Sob seu comando, feito com mãos de ferro, a companhia deixou de ser uma pequena produtora de minério de ferro para se transformar em uma das maiores exportadoras do País e um gigante mundial em seu setor de atuação. Uma das marcas de sua gestão foi a espécie de escudo criada por ele contra possíveis ingerências políticas na administração da companhia.

O sucesso dessa história tornou Eliezer um dos nomes mais assediados por presidentes da República para integrar este ou aquele ministério. O número de convites foi quase tão grande quanto o de recusas. ?Nos cargos públicos, você torna-se prisioneiro de uma série de condições que não permite que se trabalhe com a liberdade que eu gostaria?, afirma ele. Em praticamente todos os governos desde os tempos de João Goulart, o Jango, no início da década de 60, ele aparece na lista dos ministeriáveis. A exceção ficou por conta dos primeiros mandatos do regime militar. Eliezer, na visão dos generais de época, tinha uma queda pelo comunismo. A origem da desconfiança foi uma conversa entre Jango e o Marechal Tito, então o todo-poderoso da antiga Iugoslávia. Fluente em russo (assim como em inglês, alemão, francês e japonês), Eliezer serviu de tradutor. ?O assunto era corriqueiro, a possível reforma de um porto na Iugoslávia para a importação de produtos brasileiros?, conta Eliezer. Além disso, em função dos negócios, o executivo da Vale tinha muitos contatos com Tito. ?Certa vez, passei alguns dias em sua ilha particular. Vivia bem, o sujeito?, conta rindo. As suspeitas aumentavam porque a Vale era generosa na concessão de benefícios para os funcionários e pagava os melhores salários do mercado. ?Não era uma questão de altruísmo e sim de pragmatismo?, afirma ele. ?Mais motivados, os trabalhadores seriam mais produtivos.?

As ?amizades estranhas?, a ?simpatia pelos trabalhadores? e, principalmente, o domínio do idioma russo deixaram Eliezer na mira dos militares. ?Quase fui obrigado a deixar o País naquela época?, conta. Quem o ajudou foi o empresário e amigo Azevedo Antunes, do grupo Caemi. Lá, fundou e dirigiu a MBR. Eliezer voltou à Vale e correu o mundo fundando subsidiárias e vendendo o ferro produzido pela empresa. Só para o Japão viajou 178 vezes. As viagens longas, de até 36 horas, provocaram quatro tromboses. Por conta disso, perdeu mais de 70% da visão no olho direito. Conheceu gente importante. Ministros japoneses eram seus amigos. O então chanceler alemão Willy Brandt também.

Hoje, aos 77 anos, Eliezer dá expediente na sede da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan). Para lá se dirige todos os dias a partir de sua casa no Jardim Botânico, onde vive sozinho desde o ano passado, quando sua mulher, a bióloga alemã Jutta Fuhrken, morreu. Não quis morar com nenhum de seus sete filhos, quatro dos quais vivem no exterior. Os livros continuam seus companheiros inseparáveis. Dedica-se com afinco à leitura de obras sobre educação e história. O italiano Umberto Eco é um de seus autores prediletos. ?Mas não quando escreve romances?, diz Eliezer. ?Aquele O Nome da Rosa é uma bobagem.? Nos últimos anos, abandonou também os livros do filósofo Emanuel Kant. ?Li tanto Kant, que fiquei de saco cheio?, conta, às gargalhadas.
Mas mantém-se fiel a Hegel. ?Esse eu não largo.?

Essa intensa atividade intelectual o mantém com uma arguta capacidade de análise de grandes questões ? muitas vezes, na contramão das vozes correntes. Em sua opinião, por exemplo, o Brasil deve, sim, exportar mais e mais commodities. ?É a única chance de capitalizar o País para desenvolver produtos de maior valor agregado?, diz. Questões pontuais não o entusiasmam, seja por pragmatismo, seja por enfado. Sobre o governo de Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, não faz comentários. ?Não entendo de política, não é minha seara?, diz. Sua principal seara atualmente é a educação, que ele abordou, entre outros assuntos, nesta entrevista exclusiva à DINHEIRO.

DINHEIRO ? O Brasil perdeu o bonde?
ELIEZER BATISTA DA SILVA ?
Perdemos tempo, mas não o
bonde. Precisamos aproveitar aquilo que já temos de bom para construir o que ainda não temos. Hoje os recursos naturais não
são determinantes para o desenvolvimento, mas também não concordo com as teorias que dizem que isso não tem importância nenhuma. A existência de recursos naturais é uma vantagem comparativa. Mas o principal é potencial humano. Nós temos a vantagem de poder fazer uma combinação cruzando os recursos naturais e em paralelo educar a população. A associação do programa de infra-estrutura com esse investimento em educação
é o caminho mais curto para o desenvolvimento.

DINHEIRO ? Que programa de infra-estrutura seria esse?
ELIEZER ?
São quatro pilares. Um: a logística moderna, que
significa tudo que se gasta para se retirar a matéria-prima e
levá-la na forma de produto acabado até o consumidor final. É necessário ser eficiente nisso. Dois: a telemática, ou seja a tecnologia da informação. Três: a energia, em suas diferentes modalidades. E, finalmente, a educação.

DINHEIRO ? Dos quatro pilares, qual falta para o Brasil?
ELIEZER ?
A educação. A energia e a logística sofrem crises passageiras e podem ser resolvidas. E a telemática, bem,
estamos caminhando.

DINHEIRO ? Por que não se investe mais em educação?
ELIEZER ?
Precisamos de um estadista para colocar esse problema como prioridade. Precisamos usar o instrumental moderno de educação porque com isso adquire-se uma quantidade de conhecimento muito mais rápido do que antes. Olha a Coréia: era
um país em ruínas em 1949; fizeram um investimento maciço na indústria de conhecimento e hoje é exportadora disso.

DINHEIRO ? O governo Fernando Henrique não tratou do problema?
ELIEZER ?
Foi um esforço importante, mas precisamos muito mais. Ele abriu caminho para a educação, trouxe a questão da informática para dentro da escola, mas há problemas de caráter político que eu não posso julgar. Há problemas de dinheiro, de orçamento. O que sei é que outros países andaram mais do que nós. Mas é necessário um planejamento integrado do País.

DINHEIRO ? O que seria isso?
ELIEZER ?
Primeiro o Brasil pode se capitalizar com os recursos naturais. Em paralelo, deve investir pesadamente em educação. Observe o ferro, por exemplo. O Brasil pode ser o maior fornecedor de produtos de ferro do mundo. Mas precisa verticalizar sua produção com itens de mais valor agregado a partir desse recurso natural. Isso pode se transformar em um negócio que gera divisas de bilhões de dólares. Na área de alimentação, também temos oportunidade e competência. A soja já é exportada na forma de proteínas isoladas cujo valor é superior a dois mil dólares. No Sul já há fábricas trabalhando com isso.

DINHEIRO ? Então, o ideal é partir de nossos recursos naturais…
ELIEZER ?
É necessário capitalizar no que é mais fácil para nós até que se eduque a população. E quanto mais rápido educar, mais rápido usa o talento humano para desenvolver a indústria do conhecimento. Se necessário, pode-se até importar esse material humano. Os Estados Unidos fizeram isso com indianos. A Alemanha deu prioridade para a imigração de pessoal ligado à informática. Nós deveríamos importar e mandar nosso pessoal estudar lá fora.

DINHEIRO ? Há uma idéia de que o Brasil exporta commodities e o mundo quer tecnologia. Seria possível se capitalizar vendendo ferro, por exemplo?
ELIEZER ?
Por isso, o grande mercado futuro é o Oriente, o Japão, a China, Coréia, Índia, o sudeste da Ásia. É o mercado que necessita justamente dos produtos que temos para exportar. Eles precisam de ferro, produtos agrícolas, álcool. Lá há populações imensas e não há área para produzir alimentos. Eles não têm jazidas de minérios. A China está crescendo e precisa de infra-estrutura e o produto mais barato para criá-la é o aço, e somos competitivos nisso. Ao mesmo tempo em que exportamos os produtos que temos agora para quem quer comprá-los, temos de investir no desenvolvimento de uma indústria de alta tecnologia para ganhar outros mercados. O que eles compram hoje vão comprar amanhã com mais valor agregado.

DINHEIRO ? Os blocos econômicos ajudam no processo de internacionalização?
ELIEZER ?
Os blocos podem ser úteis, mas não podem nos fazer prisioneiros. Eles podem ser uma camisa-de-força. Por exemplo: nós poderíamos fazer um acordo de livre comércio com o Japão, mas isso teria de ser feito no âmbito do Mercosul. Aí então entram os interesses de outros países do bloco e fica mais difícil fechar o acordo ou o acordo fica mais limitado. O problema é que você faz um bloco em que os países produzem as mesmas coisas e lutam pelos mesmos mercados. O Mercosul trabalha muito em questões específicas, como o do setor de automóveis, o dos têxteis etc. Isso não é bloco, é uma soma de acordos setoriais. Já a União Européia se concretizou a partir de princípios, o que eu acho certo.

DINHEIRO ? O sr. sempre foi um homem assediado pelos governos para assumir ministérios. Por que aceitou tão poucos?
ELIEZER ?
Nos cargos públicos, você torna-se prisioneiro de uma série de condições que não permite que se trabalhe com liberdade. Só aceitei os que foram solicitados como uma cooperação para o País. Mas todos aqueles que vi sem perspectivas resolvi não aceitar.

DINHEIRO ? O sr. saiu frustrado?
ELIEZER ?
O Projeto de Carajás, por exemplo, eu saí satisfeito. Uma coisa que pouca gente sabe: aquele projeto inspirou a teoria do desenvolvimento sustentável. Foi o primeiro projeto no mundo em que as questões econômica, social e ambiental foram tratadas simultaneamente e de forma integrada.

DINHEIRO ? E as frustrações?
ELIEZER ?
No tempo em que fui secretário de Assuntos Estratégicos do Collor, iniciei um projeto de educação. Eu queria começar meu projeto por isso, e investi algum tempo, mas o Collor queria um negócio mais imediato e visível.

DINHEIRO ? O sr. é considerado o pai da Vale. O sr. concordou com a privatização?
ELIEZER ?
Era o caminho natural. Hoje a empresa está caminhando para um lado importante, que é agregar valor a seus produtos. Ela tem vocação para uma companhia global. Está se desenvolvendo e haverá um efeito-demonstração para outras empresas brasileiras. A Vale não só verticalizou a produção como investiu no exterior e se tornou uma global player. Ela já cresceu mais do que o mercado interno pode suportar, então tem de procurar mercados fora. E abrindo outras frentes, como o cobre.

DINHEIRO ? Com base em sua experiência na Vale, como transformar uma empresa em concorrente global?
ELIEZER ?
Primeiro tem de desenvolver um conceito. Esse conceito mundial da Vale vem da origem dela. Desenhado esse conceito, é necessário educar os colaboradores a executá-lo e se compenetrar dele. O líder fica corrigindo rumos e fazendo ajustes finos no conceito. Você pode errar no varejo, mas não no atacado, que é o conceito. Vou dizer algo que nunca falei. A Vale não é, e nunca foi, uma empresa produtora de minério de ferro, como todos pensam. A Vale é uma empresa de logística. Esse é o conceito que desenvolvi. Por quê? Porque o ferro é produto de baixo valor. Para levá-lo ao consumidor e ganhar dinheiro, eu tinha de ser extremamente eficiente na logística ferroviária, portuária, etc.

DINHEIRO ? Quais as empresas que podem chegar ao estágio de uma Vale?
ELIEZER ?
As indústrias de papel e celulose. As de metais que dependem de energia, também, mas terão de esperar a solução da crise energética.

DINHEIRO ? Não falta ao País um programa estratégico de longo prazo?
ELIEZER ?
É um problema de percepção. A realidade é diferente. Há ações estratégicas, de longo prazo. Mas isso não é feito na escala que deveria ser feito. É feito em doses pequenas e não de forma integrada. É pouco para a importância do País e para quebrar as barreiras dos problemas de infra-estrutura.

DINHEIRO ? Por que o País não planeja?
ELIEZER ?
Há mudanças muito contínuas. Chega um governo e manda todo mundo embora que não queira fazer de seu jeito. Meu modo de pensar é diferente: se tiver uma idéia melhor, eu pego e jogo a minha no lixo.