23/11/2020 - 10:44
Em Humera, localidade recentemente “libertada” pelo Exército etíope da região dissidente de Tigré, há destroços nas ruas e a eletricidade continua cortada. Os moradores tentam esquecer o terror dos bombardeios, mas a chegada de novos administradores da região vizinha preocupa.
Dois tanques carbonizados do Exército federal marcam a entrada de Humera, localidade triste com casas baixas. Os jornalistas da AFP foram os primeiros a visitar a cidade desde o início do conflito e as restrições de acesso em Tigré.
Localizada no noroeste da Etiópia, na fronteira com o Sudão e a Eritreia, Humera foi um dos primeiros objetivos da ofensiva militar lançada pelo primeiro-ministro Abiy Ahmed em 4 de novembro contra Tigré e seus líderes.
Após intensos combates contra as forças da Frente de Libertação do Povo de Tigré (TPLF), partido que dirige a região e que desafia o governo federal há vários meses, a localidade foi declarada “libertada” em 12 de novembro.
Humera, onde vivem cerca de 30.000 pessoas, carrega as cicatrizes: a fachada do Hotel África carrega um enorme buraco e os prédios ao redor estão crivados de balas.
No centro da cidade, soldados descansam em cadeiras de plástico, à sombra das árvores. Os residentes que não fugiram estão reunidos em torno de televisores ligados a geradores, enquanto veículos militares percorrem as ruas de paralelepípedos.
– “Fiquei apavorado” –
O conflito se manifestou de repente em Humera na forma aterrorizante de tiros de artilharia.
“Não esperávamos bombardeios”, conta Getachew Berhane, um homem careca de 42 anos, “de repente começamos a ouvir armas de guerra, explosões e houve pânico”.
“Não podia sair de casa, fiquei apavorado”, descreve ele à equipe da AFP, acompanhado por um funcionário do governo que escuta suas palavras.
Alguns dos habitantes de Humera estão entre os primeiros etíopes a se refugiar no vizinho Sudão, onde agora vivem cerca de 36.000.
Em um prédio residencial, duas mulheres deitadas ainda tratam de seus ferimentos. Duas mulheres e um idoso morreram no local em bombardeios e tiros, informaram à AFP.
Um morador afirma conhecer pelo menos 10 pessoas mortas somente em seu bairro, mas a AFP não foi autorizada a visitar o hospital local para tentar estabelecer um balanço dos combates.
Cidade na encruzilhada de uma planície agrícola quente e seca, Humera “começava a se desenvolver”, garante Tewodros Gebreselassie, comerciante de barba grisalha, “mas agora retrocedeu por causa de uma guerra desnecessária”.
Abiy, prêmio Nobel da Paz 2019 e mais jovem líder africano, acusa as forças de Tigré de terem começado a guerra atacando duas bases do Exército federal em Tigré, o que a TPLF nega.
Os combates deixaram Humera rumo ao leste montanhoso abrigando a capital regional Mekele, objetivo final da ofensiva, de onde o governo federal quer expulsar a TPLF para substituí-la por “instituições legítimas”.
– Bandeira imperial –
No domingo, Abiy deu aos líderes da TPLF o prazo de 72 horas para se renderem antes de um ataque impiedoso à cidade de meio milhão de pessoas.
Em Humera, as autoridades federais começaram a construir “instituições legítimas” instalando funcionários da região vizinha de Amhara.
Uma escolha arriscada, que provavelmente alimentará as já fortes tensões entre as comunidades de Tigré e Amhara.
Da mesma forma, no oeste de Tigré, soldados federais são raros e são os homens uniformizados das “Forças Especiais” de Amhara que fornecem segurança.
Autoridade amhara, Daniel Wubet, com Kalashnikov no ombro, explica à AFP que estava em Humera para supervisionar “a manutenção da paz”, fornecer alimentos básicos aos habitantes e “educá-los” sobre as más ações da TPLF.
Ele escolheu moradores locais para ajudá-lo nessa empreitada.
Os conflitos territoriais, por vezes degenerados em violência, opõem tigrés (6% da população) e amharas (cerca de 20%) desde a ofensiva vitoriosa da TPLF contra Addis Ababa para expulsar o regime militar marxista de Derg em 1991.
Com a derrubada do Derg, a TPLF assumiu o controle das alavancas do poder e do aparato de segurança da Etiópia por mais de 25 anos, até que foi gradualmente marginalizada por Abiy, quando ele se tornou primeiro-ministro em 2018.
“Desde que me lembro, essa terra pertencia aos amharas” até que “a TPLF assumiu” em 1991, diz Abrehu Fentahum, um fazendeiro amhara idoso, sobre as terras que cultiva no oeste de Tigré.
Há muito ele está ansioso para ver essas terras voltarem ao controle de um governo amhara, embora Daniel Wubet assegure que esse não é o objetivo.
Em Humera, as bandeiras da TPLF foram substituídas pelas da era imperial etíope, verde-amarelo-vermelho, adotadas pelos nacionalistas amharas.
Símbolos improváveis de aliviar os medos dos tigrés, bem como a palavra “Amhara” inscrita nas vitrines das lojas como títulos de propriedade rabiscados às pressas.
Em uma mensagem enviada à AFP, o presidente do Tigré Debretsion Gebremichael estimou que a presença de administradores e combatentes amharas “era um dos planos diabólicos para enfraquecer o Tigré”.
“Mas vamos continuar o combate, até que tenham partido”, alertou.