Um estudo independente contratado pela Volkswagen na Alemanha confirma os indícios levantados ao longo dos últimos anos sobre o envolvimento da filial brasileira com o regime militar, que governou o Brasil de 1964 a 1985. O historiador Chistopher Kopper, da Universidade de Bielefeld, concluiu que o trabalho de vigilância conduzido pelo Departamento de Segurança Industrial da companhia facilitou a prisão de ao menos sete funcionários considerados subversivos, levou à demissão de empregados envolvidos em atividades sindicais e abasteceu “listas sujas” com nomes de ativistas trocadas com autoridades e outras empresas.

O levantamento atesta que a Volkswagen foi “irrestritamente leal” ao regime e sugere benefícios econômicos obtidos pelo grupo com a supressão de liberdades nas relações trabalhistas no período da ditadura. “A Volkswagen do Brasil e, em última instância também a Volkswagen AG [grupo Volkswagen], aproveitaram para si a suspensão dos direitos trabalhistas elementares”, afirma o relatório contratado pela própria empresa, que cita os lucros “surpreendentemente altos” obtidos na época. O levantamento, cuja versão preliminar foi obtida pela DINHEIRO, será divulgado na manhã de quinta-feira 14, em um evento na sede da montadora, em São Bernardo do Campo, com a presença do historiador Kopper e o presidente da Volkswagen na América do Sul, Pablo Di Si. A empresa também pretende anunciar apoio a entidades de promoção aos Direitos Humanos. Procurada, a Volkswagen afirmou que somente se pronunciará sobre o caso no evento.

A Volkswagen é a primeira empresa a liderar uma investigação própria sobre as relações com o regime militar brasileiro. O trabalho foi encomendado pela Diretoria de Integridade na Alemanha após os apontamentos levantados pela Comissão Nacional da Verdade, em 2013, e a representação feita ao Ministério Público Federal, em 2015, por trabalhadores e centrais sindicais. O inquérito da Procuradoria está em fase final de conclusão. Um relatório preliminar, produzido pelo perito Guaracy Minguardi, apresenta provas que sustentam conclusão semelhante às apresentadas pelo historiador alemão. “Não restam dúvidas de que a Volkswagen, além de colaborar com os órgãos repressivos, também agiu por conta própria, às vezes participando da repressão”, afirma o documento do perito. O texto ainda aponta a “repressão ativa da empresa contra funcionários” e indica a existência de um “sistema de vigilância e repressão construído entre montadoras e a polícia política.”

As conclusões do perito são baseadas em documentos levantados pelos trabalhadores, sindicatos, Comissões da Verdade, arquivos do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) e depoimentos de ex-funcionários da companhia. Já o historiador alemão contratado pela Volkswagen teve acesso a documentos internos, como telegramas enviados da filial para a matriz, atas de reuniões de diretoria, além dos papéis dos arquivos públicos brasileiros. Um dos casos mais emblemáticos retratados em ambos os levantamentos é o da prisão, em 1972, dos trabalhadores ligados à célula do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que funcionava dentro da fábrica. Ao menos seis trabalhadores foram presos dentro da unidade de São Bernardo do Campo e levados para o Dops, onde foram submetidos à tortura.

Uma das evidências da participação da empresa no episódio está contida em documento do Dops levantado pelo perito, em que os militares citam um “entrosamento com a segurança” da Volkswagen. Depoimentos da época confirmam que as prisões ocorreram sem mandado. O trabalho também elenca documentos encontrados em comunicações oficiais dos militares com o timbre da empresa, além de menções a informações colhidas com representantes da segurança industrial e o contato com seus representantes.

A Volkswagen não era a única a empresa a colaborar com o regime militar, mas autoridades acreditam que ela tenha sido uma das mais ativas no período, com um sistema organizado de vigilância e colaboração com as autoridades. Numa investigação conduzida pelas emissoras alemãs de TV NDR, SWR e o jornal Süddeutsche Zeitung, a equipe encontrou na Alemanha uma comunicação da subsidiária do Brasil informando a prisão dos trabalhadores na fábrica. O contato é ressaltado no relatório de Kopper, que ressalta a omissão da equipe brasileira em citar a colaboração da segurança industrial.

Num documentário produzido pelo grupo da NDR, SWR e o jornal Süddeutsche Zeitung, o então gerente da Volkswagen na época, Jacy Mendonça, nega a participação da companhia nos episódios e afirma que nunca foi permitida a entrada de militares na fábrica.  “Eu não gosto da rotulagem de ditadura militar”, afirma Mendonça no filme. “As empresas viveram um período extremamente positivo. Cresceram 10% ao ano porque havia ordem.”

As emissoras alemãs também entrevistaram o então diretor do Dops, José Bonchristiano. Em seu depoimento, ele confirma a colaboração. “A Volkswagen, quando a gente pedia, eles faziam o que a gente determinava.” O relatório de Kopper mostra agora como era a estrutura para fazer esse trabalho. Em 1973, havia na fábrica um integrante da segurança industrial para cada trabalhador, ou mais de 300 pessoas, segundo é possível concluir a partir de cálculos com os dados do próprio relatório. “O departamento de segurança industrial tinha recursos para monitorar toda a fábrica quase integralmente”, afirma Kooper no documento.

PROTESTO

Kooper é o segundo historiador a se envolver no caso da Volkswagen do Brasil com a ditadura militar. Ele substituiu o historiador da companhia na Alemanha Manfred Griger, que chegou a tentar uma reunião com os trabalhadores no Brasil, mas abandonou o caso. Já o grupo de ex-funcionários que foi vítima da repressão continua a cobrar da empresa uma postura de negociação. Eles decidiram não participar oficialmente do evento organizado pela empresa nesta quinta-feira e vão fazer um protesto na porta da fábrica. Para eles, a companhia deve aceitar a mediação do Ministério Público no caso e sinalizar disposição em oferecer um pedido oficial de desculpas, bem como as formas de reparar o abuso de direitos no passado. “Queríamos que eles sinalizassem que estão abertos à negociação”, afirma Lucio Bellentani, um dos ex-funcionários presos na fábrica em 1972.