23/11/2025 - 11:53
Wilson Simonal, Nelson Rodrigues e Monteiro Lobato são exemplos de personalidades que, volta e meia, sofrem perseguição por algo que disseram ou fizeram.Deu no Pasquim: “Wilson Simonal jantou Sérgio Mendes”. Na noite de 5 de julho de 1969, Simonal foi convidado para fazer o show de abertura de Mendes no Maracanãzinho (RJ). Durante a apresentação, o “rei do suingue” regeu uma multidão de 30 mil vozes. Conclusão: a plateia não queria deixá-lo ir embora.
No camarim, a atração principal da noite não entendeu nada. Menos ainda quando, ao pisar no palco, ouviu vaias. O jeito foi chamar Simonal de volta aos primeiros acordes de Sá Marina. “Na despedida de Sérgio Mendes, o maior mesmo foi Simona”, elogiou o crítico Nelson Motta em sua coluna no jornal Última Hora.
Em 1971, o cantor voltou a ser notícia no Pasquim: “O dedo de Simonal é hoje muito mais famoso do que sua voz”. A charge fazia referência à fama de “dedo-duro” do cantor. Acusado de delatar o ex-contador, responsável por um suposto desfalque em sua empresa, Simonal virou “informante da ditadura “. Dizia-se que artistas tidos como subversivos teriam sido denunciados por ele à polícia. A suspeita nunca foi confirmada.
Um dos cantores mais populares do Brasil na década de 1960, Simonal caiu em desgraça. Parou de fazer shows e de vender discos. “Fui abatido no auge do estrelato”, declarou à Folha de S. Paulo de 25 de novembro de 1994. Vítima de cirrose hepática, morreu em 25 de junho de 2000, aos 64 anos. “Overdose de ostracismo”, queixou-se a segunda mulher, Sofia Cerqueira, no documentário Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Dei (2009).
“Tem uma galera que não gostava do Simonal. Chamava ele de ‘negão arrogante’. No Brasil, se você é negão, não pode ser arrogante. Se é arrogante, não pode ser negão. O componente racial ajuda a explicar a duração da pena”, afirma Cláudio Manoel, diretor de Simonal. “Quando comecei a fazer o documentário em 2003, a maioria das pessoas não tinha a menor ideia de quem foi Wilson Simonal. Jesus ressuscitou Lázaro e eu, Simonal”, brinca.
Depois de Simonal, dirigido em parceria com Micael Langer e Calvito Leal, vieram outros projetos: as biografias Nem Vem Que Não Tem: A Vida e o Veneno de Wilson Simonal (2009), de Ricardo Alexandre, e Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga (2011), de Gustavo Alonso; o musical S’imbora: A História de Wilson Simonal (2015), de Pedro Brício; e o filme Simonal (2019), de Leonardo Domingues.
“Não é possível dissociar um artista de sua obra. No entanto, o ser humano é multidimensional. O Simonal não é apenas o cantor acusado de colaborar com o regime. Assim como não é apenas o ‘showman’. É uma mistura disso tudo. E, por isso mesmo, era um grande artista”, avalia Alexandre, que relança Nem Vem Que Não Tem pela Arquipélago. “É um personagem rico. Um cara de nuances numa época em que tudo era preto no branco”.
“Como separar o criador da criação?”
Em Monstros: O Dilema do Fã (2025), a jornalista americana Claire Dederer esmiúça casos famosos de artistas suspeitos de cometerem atos moralmente deploráveis, como o cineasta Woody Allen , a escritora J.K. Rowling e o cantor Michael Jackson , entre outros. “Todos foram acusados de fazer ou dizer algo horroroso, e fizeram algo grandioso”, sintetiza a autora no livro. “Como separar o criador da criação?”.
Quem “inspirou” Dederer a escrever o livro foi Roman Polanski . Ela admite que tem um caso de amor e ódio com o diretor de Repulsa Ao Sexo (1965), O Bebê de Rosemary (1968) e Chinatown (1974). Ao mesmo tempo em que idolatra seus filmes, não o perdoa por ter drogado e estuprado uma garota de 13 anos. O crime aconteceu no dia 10 de março de 1977, em Los Angeles. “Amo seu trabalho e odeio sua moral”, resume.
Na ocasião, Polanski ficou 42 dias preso e foi solto após o pagamento de fiança. O cineasta fugiu para a França antes do anúncio da sentença. Desde então, nunca mais voltou aos EUA. Nem para receber o Oscar de melhor diretor por O Pianista (2002). A vítima, hoje com 62 anos, publicou sua autobiografia em 2013: A Menina: Uma Vida À Sombra de Roman Polanski. “Não o perdoei por ele, perdoei por mim”, explicou no livro.
Tribunal da internet
Wilson Simonal é o mais famoso caso de artista cancelado no Brasil. Mas há outras vítimas de “caça às bruxas”, como o escritor Monteiro Lobato, o dramaturgo Nelson Rodrigues e o grupo Os Trapalhões. “É como um ‘boicote social’. Só que, em vez de cancelar uma assinatura, cancelamos pessoas”, explica o advogado Marcelo Hugo da Rocha. “É um tribunal virtual, sem direito de defesa, que pune primeiro e pergunta depois.”
Hugo da Rocha é autor de Cancelado: A Cultura do Cancelamento e o Prejulgamento nas Redes Sociais (2021), escrito em parceria com Fernando Elias José. A expressão é novíssima, mas a lógica é antiga. “Na Atenas clássica, já havia o ostracismo: cidadãos votavam para banir alguém por dez anos. Era o esquecimento como castigo. O que muda no século 21 é a velocidade: um tuíte pode transformar indignação em sanção em poucos minutos.”
Anjo caído
Na introdução de O Anjo Pornográfico (1992), o escritor Ruy Castro fala de duas das muitas famas de Nelson Rodrigues : “tarado” e “reacionário”. “Ninguém foi mais perseguido: a direita, a esquerda, a censura, os críticos, os católicos… Todos, em alguma época, viram nele o anjo do mal”, escreveu. Depois de morto, o dramaturgo pernambucano ganhou outra pecha: a de machista. Toda e qualquer antologia está repleta de frases sexistas.
Um exemplo: “Toda mulher gosta de apanhar. O homem é que não gosta de bater” está em Flor de Obsessão (1997). Outro: “A mulher que apanha e continua fiel não é séria, é burra!” está em Só Os Profetas Enxergam o Óbvio (2020). Mais um: “Para bater na mulher, não é preciso ser casado. O homem pode ser namorado, noivo ou amante. O jogo amoroso exige na hora certa a violência masculina”, em Nelson Rodrigues Por Ele Mesmo (2022).
“Nelson foi um provocador e, como tal, foi vaiado diversas vezes – a vaia da época equivalia ao cancelamento de hoje. Mas, esses cancelamentos eram eventuais e passageiros”, afirma o crítico André Seffrin, organizador de Só Os Profetas Enxergam o Óbvio. “Nelson sabia o que estava fazendo. Os gênios, em geral, têm consciência do que fazem. O que importa ao artista é ser honesto consigo. E ele foi, do início ao fim, até nas frases polêmicas.”
Doutora em Literatura pela PUC-Rio, a escritora Sônia Rodrigues não considera a obra do pai machista. “Não podemos confundir autor com personagem. Como todos os escritores de ficção, ele criava mundos – mundos realistas”, explica a organizadora de Nelson Rodrigues Por Ele Mesmo. “As personagens femininas eram oprimidas por homens (e mulheres) machistas. Mas, em geral, resistiam, mentiam, traíam e, inclusive, matavam”.
Racismo recreativo
Nas noites de domingo, milhões de brasileiros caíam na risada com Os Trapalhões. Muitas piadas, nos dias de hoje, seriam consideradas ofensivas. Como chamar negro de “galinha de macumba”, homossexual de “rapaz alegre” e nordestino de “estrogonofe de carne-seca”. Um dos alvos favoritos era Mussum. Ganhou, entre outros apelidos, “negão”, “urubu” e “macaco”. Nessas horas, costumava rebater, indignado: “Negão é o teu passadis!”.
“O humor pode tanto reforçar preconceitos quanto subvertê-los. No caso dos Trapalhões, eles fizeram as duas coisas. Por um lado, o grupo gerava uma forte identificação no público. Havia representatividade: o negro, o pobre, o nordestino… Mas, por outro, reforçava a lógica machista do assédio ao chamar a mulher de ‘Bicho bom’, por exemplo”, analisa a historiadora Geisa Fernandes, doutora em Comunicação pela USP.
Com a morte de Zacarias em 18 de março de 1990 e a de Mussum em 31 de julho de 1994, o último programa inédito foi exibido no dia 27 de agosto de 1995. Se fosse exibido hoje, 30 anos depois, será que faria o mesmo sucesso? Provavelmente, não. Em 2017, a Globo tentou emplacar uma nova versão, sem as piadas politicamente incorretas do original. Não deu certo. Previsto para durar três temporadas, teve apenas dez episódios.
“Os Trapalhões são frutos de uma época, onde quase tudo era permitido. Hoje, teriam um canal no YouTube e fariam humor para uma bolha. Se não se adaptassem aos tempos atuais, seriam boicotados e teriam haters”, avalia o jornalista Rafael Spaca, autor do livro Os Trapalhões: Modo de Ser, de Pensar e se Expressar (2023). “Naquela época, os artistas adoravam ser parodiados. Hoje, tenho minhas dúvidas se metade deles topariam”.
Caça às bruxas
Em 2010, o Conselho Nacional de Educação determinou que a obra Caçadas de Pedrinho (1933), de Monteiro Lobato, fosse recolhida das escolas. Para justificar a decisão, destacou trechos do livro. Num deles, Tia Nastácia, para fugir de uma onça, escalou um mastro “que nem macaca de carvão”. Noutro, Emília avisa que, diante de outro ataque, não vai escapar ninguém: “Nem Tia Nastácia, que tem carne preta”. O caso foi parar no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
“Fui leitor ávido de Lobato e não me tornei racista por causa disso. Pelo contrário. Quando Emília se referia a Tia Nastácia como ‘negra beiçuda’, eu ficava irritado”, afirma o escritor Cláudio Fragata, autor da apresentação do livro Histórias de Tia Nastácia (2009). “Não dá para dissociar um autor da época em que ele viveu. O que dá é para discutir o racismo a partir da mediação de educadores. Suprimir os trechos polêmicos me parece censura.”
Não bastasse a acusação de racismo, Lobato seria também um defensor da Ku Klux Klan, grupo extremista de supremacia branca. “País de mestiços, onde o branco não tem força para organizar uma Ku Klux Klan, é um país perdido”, escreveu, em 1928. A jornalista Cilza Carla Bignotto cita outra carta: de 1947, pouco antes de morrer. “E o candomblé da Bahia? Nunca uma festa me impressionou tanto. (…) Dá vontade da gente ser negro.”
“Um ser humano é sempre muitos, e pode mudar, voltar atrás, fingir que não mudou, etc. Como sou professora, preciso acreditar que as pessoas podem mudar para melhor, por meio do que aprendem durante a vida. Se eu não acreditar nisso, minha profissão e minhas ações antirracistas fazem pouco sentido. Daí, minha interpretação de que Lobato teria mudado para melhor”, afirma Bignotto, doutora em Teoria e História Literária pela Unicamp.