20/03/2019 - 18:16
Aos 33 anos, Emily Faulconer é a principal enóloga da Viña Carmen, tradicional vinícola chilena, batizada com o nome de uma mulher. Quando Emily assumiu o cargo no ano passado, muito se falou, a boca pequena, da ousadia da vinícola. Promover uma mulher e, ainda por cima, tão jovem. Sem se preocupar com as críticas, Emily segue forte com a missão de continuar aperfeiçoando a linha de vinhos premium da vinícola, com o foco de elaborar brancos e tintos com identidade e resgatando o valor do terroir.
Filha de pai inglês e mãe argentina, Emily se formou em agronomia na Universidade Católica do Chile, com especialização em enologia. O seu currículo registra passagens pelo Viñedos Alcohuaz, o projeto de Marcelo Retamal, no Vale de Elqui; na Viña Maquis e Viu Manent, em Colchagua, estas no Chile. Teve experiência internacional trabalhando em vinícolas nos Estados Unidos (a Cakebread Cellars), na Nova Zelândia (a Trinity Hill Winery) e na França (Château Canon). Antes de assumir o desafio da Carmen, ela era enóloga chefe da Viña Arboleda. Confira, a seguir, a entrevista, feita por e-mail.
Quais são os principais desafios para uma jovem enóloga assumir uma vinícola tradicional como a Viña Carmen? Você já sofreu algum preconceito por ser uma mulher nesse universo?
Vivemos em uma sociedade que, em muitos aspectos, ainda é machista. Tem tido avanços e as novas gerações vem compreendendo o papel complementar entre homens e mulheres, não só no trabalho, mas também no lado pessoal. Mas ainda há muito a ser feito. No nível do trabalho, é fato que é necessária uma maior incorporação de mulheres, especialmente em cargos de liderança. No meu caso, soube aproveitar os desafios e oportunidades quando estas se apresentaram.
Como profissional, sinto-me muito à vontade em Viña Carmen. Tive todas as oportunidades para desenvolver meu trabalho e crescer profissionalmente. Trabalho em uma empresa que entende os benefícios de ter equipes complementares que fornecem diferentes visões. Além disso, as oportunidades são dadas independentemente do gênero, mas sim de habilidades e desempenho. É uma honra fazer parte de uma vinícola com mais de 160 anos, que tem o nome de mulher e um estilo único, contemporâneo e universal, que consegue cativar também as novas gerações.
Quanto ao tema da juventude, tem sido uma maneira de aprender. Claramente, minha visão é diferente da que eu tinha alguns anos atrás. A maturidade me ajudou muito a enfrentar situações difíceis, manter a cabeça fria e não tão emotiva. Eu aprendi a pedir ajuda, baixar minha guarda e montar uma equipe. A boa notícia é que os jovens não duram para sempre! Eu acho que a juventude traz energia, entusiasmo, criatividade. Além disso, as novas gerações vêm diretamente as tendências do consumidor e isso é fundamental.
Um de seus projetos na Viña Carmen é o resgate de uvas e produtores (o projeto D.O.). Quais são os diferenciais que uma mulher pode trazer neste projeto?
O Carmen DO nasceu de uma busca profunda para voltar às raízes da viticultura. O sonho por trás deste projeto é surpreender com vinhos simples, diferentes, únicos e reconhecíveis. Procuramos revitalizar antigos vinhedos do Chile para mostrar a máxima expressão da uva, com intervenções mínimas, trabalhando de mãos dadas com pequenos produtores. É justamente nesse resgate da vitivinicultura tradicional do Chile que as boas relações de trabalho são fundamentais, baseadas no respeito e na confiança. Eu gosto de colaborar para alcançar objetivos comuns, e nisso homens e mulheres contribuem com coisas distintas, mas se complementam. Eu acredito que essa atitude é fundamental; o conceito de “fazer vinho” tem muito conteúdo, de identificar o lugar, ler a paisagem, visualizar um caminho para criá-lo e, mais importante, fazer um trabalho respeitoso e compreensivo com o terroir. Isso é dado pelo tempo e pela experiência, começa com uma ideia, mas o caminho vai moldando o vinho.
O meu sonho como enólogo é conseguir uma interpretação do terroir e vê-la refletida em um vinho que tenha a capacidade de envelhecer ao longo do tempo. Os grandes vinhos capturam parte da cultura ou da realidade de um dado momento. Isso, dentro de uma garrafa, para poderem voltar em algum momento.
Em sua opinião, quais são as diferenças e vantagens de um vinho feito por mulheres?
O setor do vinho é tremendamente competitivo. Um tempo atrás, não havia mulheres nesta área. Hoje é um espaço que abriu suas portas para as mulheres, especialmente no exterior, onde estas questões andam mais rápido. Atualmente existem grandes produções femininas, o que mostra que estamos no caminho certo. Eu sinto que, em geral, a influência das mulheres no mundo do trabalho aumentou, não só no setor do vinho. Toda a sociedade tem de fazer a sua parte, as competências requeridas para um trabalho não são por gênero, existem oportunidades e nós temos que ousar assumí-las.
Eu acredito que homens e mulheres contribuem de maneira diferente para o trabalho, o que é muito importante porque nos complementamos. Minha experiência trabalhando com mulheres tem sido muito boa, assim como minha experiência trabalhando com homens.
Eu tive a sorte de trabalhar no exterior e também com os melhores enólogos do Chile. Todos me ensinaram o que é necessário para fazer um vinho: viajar, provar, analisar, ler uma paisagem, caminhar pelos vinhedos, depois andar novamente pela vinha, cometer erros, tentar novamente. Tem de viver isso para entender.
É possível definir um vinho como feminino ou masculino?
Na definição clássica, relaciona-se o vinho potente com o delicado, e podemos encontrar vinhos que têm certas características mais do que outros. Existem vinhos, variedades e regiões que podem dar um perfil mais feminino ou masculino. Um dos exemplos mais típicos é a cabernet sauvignon, que é uma variedade mais robusta, opulenta, versus a carménère que tem taninos sedosos, bom volume em boca, porém resulta em um vinho delicado, que poderia ser classificado como mais feminino.
Há também lugares, tipos de solos ou climas que afetam o caráter de um vinho. Tem regiões que produzem carménère muito potente, e outras que dão lugar a um cabernet sauvignon mais delicado. O importante é o terroir, mas as pessoas também. Tem a interpretação que a pessoa faz do vinho, se escolhe o caminho da sutileza ou de vinhos mais potentes, com mais extração.
As mulheres e o vinho
Durante todo o mês de março posto aqui as mais diversas histórias de mulheres no mundo do vinho. Em 2018 foram 23 textos de personalidades e épocas diferentes e em 2019 continuo a tradição. Adorei pesquisar e conhecer mais sobre estas pessoas e seus desafios. Confira, a seguir, quais foram estas mulheres.
2019
2018
– Barbe-Nicole Clicquot, mais conhecida como a Veuve Clicquot
– Jancis Robinson, a inglesa mais influente do mundo do vinho com o seu www.jancisrobinson.com
– Lalou Bize-Leroy, a polêmica e competentíssima produtora da Borgonha
– Serena Sutcliffe e os leilões de vinho
– Maria Luz Marín, a chilena pioneira no vale de San Antonio, no Chile.
– Natasha Bozs, uma das primeiras enólogas negras da África do Sul, da Nederburg
– Elena Walch, a arquiteta que virou enóloga e hoje tem sua própria vinícola no Alto Adige
– Véronique Drouhin-Boss, a francesa da quarta geração da domaine Drouhi
– As associações de mulheres e vinhos já existem em 10 regiões francesas
– Lorenza Sebasti, proprietária da vinícola italiana Castello di Ama
– A portuguesa Filipa Pato, dos vinhos da Bairrada
– Lis Cereja, a brasileira que mais e melhor levanta a bandeira do vinho natural no Brasil
– Féminalise, um concurso de vinhos francês que só tem juradas
– Albiera Antinori, a primeira mulher a dirigir a tradicional vinícola italiana
– Susana Balbo, a pioneira nos vinhos argentinos
– Cecília Torres, a primeira mulher nos vinhos chilenos com o Casa Real
– Ludivine Griveau, que dirige os vinhos do Hospice de Beaune, na Borgonha
– A dupla de amigas e enólogas portuguesas Sandra Tavares e Susana Esteban
– Patricia Atkinson, e a sua aventura de elaborar vinhos franceses