Uma área verde de 63,6 mil m² com resquícios de Mata Atlântica, o equivalente ao tamanho do Pacaembu, está prestes a se transformar em condomínio de luxo no Alto da Boa Vista, na zona sul da capital paulista. Após aval da Justiça de São Paulo, mas ainda sem julgamento de recurso em instância superior, a construtora deu início à derrubada de árvores na semana passada, segundo relatam moradores do bairro.

Chamado de Chácara Alfomares, o espaço abriga espelhos d’água e jardins projetados por Burle Marx, além de árvores nativas, algumas delas sob proteção ambiental, espécies frutíferas e eucaliptos. Os bosques servem de moradia a saguis, saruês e uma série de aves, como tucanos, pica-paus e gaviões – até uma araponga, que aparece na lista vermelha de animais em extinção, teria sido avistada por lá recentemente.

Proprietária do terreno, a construtora Viver, a antiga InPar, pretende erguer um condomínio horizontal sobre a área. Segundo ação movida pelo Ministério Público de São Paulo (MPE-SP), que contesta a regularidade das obras e alerta sobre prejuízos ambientais, o projeto prevê 50 edificações, ao todo, além de um parque com acesso ao público no meio do empreendimento.

A disputa judicial pela construção do condomínio já se arrasta há mais de uma década e, hoje, conta com decisão favorável à empresa no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP).

Em 2004, a incorporadora conseguir autorização da Prefeitura, à época sob a gestão Marta Suplicy (então no PT), para fazer o manejo das árvores e iniciar a construção das casas. As obras, no entanto, acabaram embargadas quatro anos depois, a pedido da promotoria do Meio Ambiente. A empresa também foi autuada por remover a boa parte da vegetação.

Para o MPE-SP, a obtenção das licenças municipais teria sido fraudulenta, uma vez que a Viver dividiu o terreno em quatro lotes inferiores a 15 mil m², supostamente para escapar de exigências ambientais. Na visão da promotoria, o empreendimento implicaria em “irrecuperável dano a bem comum de todos e ainda maior degradação da qualidade ambiental desta capital”.

Inicialmente, o TJ-SP deu razão à denúncia, mas a Viver conseguiu reverter a sentença na segunda instância no fim de 2017. Para os desembargadores, “não ficou demonstrada irregularidade no procedimento administrativo” ou “caracterizada a hipótese de efetivo dano ao meio ambiente”, já que mais de 15% da área seria preservada.

Na decisão, os magistrados destacam, ainda, que a construtora doou 20,1 mil m² do terreno, incluindo áreas protegidas, para a Prefeitura e assinou de quatro termos de compensação ambiental (TCAs). Pelos acordos, a empresa se compromete a reformar equipamento público e entregar ou plantar 17 mil novas mudas para a cidade.

Moradores da região também se mobilizaram contra a derrubada de árvores e chegaram a realizar protestos na frente do local. Um abaixo-assinado, contrário ao que o grupo chama de “devastação” de mais de 2 mil árvores de Mata Atlântica e “calamidade” na Chácara Alfomares, reuniu mais de 24 mil assinaturas em uma semana. Eles alegam, ainda, que a vegetação que havia sido destruída conseguiu se recuperar de 2008 para cá.

“Há muitos impactos locais. É a real perda desse ecossistema, seja por beleza, fauna ou flora. Vamos tirar o que está filtrando o ar, reduzindo a temperatura e drenando o aquífero Guarani. Precisamos de água e de verde”, afirma Guilherme Alves, presidente da Associação dos Amigos do Bairro Alto da Boa Vista (Sababv). “A área doada está no meio do empreendimento: é literalmente um bolsão verde com todos os condomínios virados para ele.”

Impasse

Após a derrota em segundo instância, o MPE-SP apelou para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), mas o recurso ainda não foi julgado em Brasília. Com a notícia de que a retirada da vegetação teria começado, a promotoria expediu ofício à Prefeitura e a à Secretaria do Meio Ambiente, solicitando informações na semana passada.

“Não há decisão definitiva no caso, então o poder público, por todos os seus órgãos, deve atender aos princípios da prevenção e da precaução”, diz o promotor Luís Roberto Proença. “Deve-se ter em conta que será de pouca valia um julgamento favorável do STJ no futuro, sob o aspecto ambiental, se as centenas de árvores atualmente existentes na gleba já tiverem sido suprimidas e substituídas por ruas e edificações.”

Em janeiro, o juiz Josué Vilela Pimentel, da 8ª Vara da Fazenda Pública do TJ-SP, determinou que a sentença da Justiça estadual fosse cumprida. Ele reforça no documento que, pelo acórdão, as autorizações recebidas pela empresa na década passada continuam em vigor.

“São válidos e vigentes todos os atos administrativos autorizadores da implementação do empreendimento, tal como vigiam no momento em que foi decretada a primeira suspensão de suas execuções”, escreveu. “As regenerações ocorridas na vegetação existente no local decorreram unicamente da inércia que foi imposta aos exequentes. (…) Se a vegetação ressurgiu, deve ser novamente retirada, sem necessidade de novas autorizações, pois ali não deveria estar.”

No dia 23 de outubro, a gestão Bruno Covas (PSDB) publicou a revalidação dos TCAs no Diário Oficial – o que, na prática, permite que a Viver remova novamente as árvores. Em nota, a Prefeitura afirma que o ato se deu em função da decisão judicial. “O Tribunal de Justiça rejeitou os pedidos do Ministério Público, considerando válidos todos os atos municipais questionados”, diz. “Os recursos não suspendem os efeitos da decisão, não havendo, portanto, óbice judicial.”

A Viver afirma que “forneceu aos órgãos responsáveis toda a documentação aprovada relativa ao processo de supressão na região de Santo Amaro, em São Paulo”. “Vale frisar que a atividade foi previamente aprovada pela Secretaria do Verde e Meio Ambiente da Prefeitura de São Paulo”, diz comunicado da construtora. “Todo o projeto vem sendo conduzido respeitando as legislações ambientais e com a consultoria de especialistas competentes.”