16/05/2024 - 7:23
O cineasta Jorge Furtado é conectado a Porto Alegre por sua certidão de nascimento e por sua obra. Seus filmes são conhecidos por usar bairros da capital gaúcha como cenário, desde Ilha das Flores – filmado em uma das ilhas do Guaíba que estão agora submersas – ao 4°Distrito, ao lado do rio, também debaixo d’água.
O cineasta mora no Bairro Rio Branco, em um ponto alto da cidade, em um andar alto de um prédio. Está seguro, mas tem passado os dias engajado em campanhas de doação, e acompanhando, apreensivo, a subida no nível do Rio Guaíba, que vê da janela de seu apartamento.
“Só estando aqui para entender. A imprensa está cobrindo muito bem, mas o volume, o tamanho da coisa, não cabe na tela. Vai ser um marco, uma cicatriz eterna na história da cidade”, afirma.
Em entrevista à DW, Furtado fala sobre a dimensão da tragédia, o impacto para a cidade e para o setor cultural, e lembra da infância ouvindo histórias sobre a grande enchente de 1941.
DW: Como o senhor vê a situação que está se desdobrando ao seu redor?
Jorge Furtado: O Brasil já viveu muitas tragédias, deslizamentos, alagamentos. O que há de totalmente inédito na tragédia gaúcha é a sua proporção. Nunca aconteceu nada parecido na história do Brasil.
Já passamos de meio milhão de pessoas desabrigadas, longe de casa, que perderam tudo, que não têm para onde voltar. E esse número não para de crescer. É como se uma cidade como Santos, Niterói, Feira de Santana, sumisse.
Aqui, todo mundo conhece alguém que perdeu tudo. Só estando aqui para entender. A imprensa está cobrindo muito bem, mas o volume, o tamanho da coisa, não cabe na tela. Vai ser um marco, uma cicatriz eterna na história da cidade.
Eu não tinha nascido na grande enchente de 1941, mas sempre ouvia histórias a respeito na infância, as pessoas criaram expressões. Imagina com essa, que foi ainda maior.
Que histórias o senhor ouvia sobre a enchente de 1941? A que expressões se refere?
Surgiu uma expressão que falava no “abobado na enchente”. Na minha infância se dizia, “ó o abobado da enchente!”. Era alguém que ficava parado, ouvindo, sem reação. Essa expressão durou. Eu imaginava que era referência a alguém parado observando o desastre, vendo tudo alagado.
Mas agora a expressão mudou de sentido para mim. Acho que fala dos sem esperança da enchente. São pessoas que não tem para onde ir, que ficam vagando pela cidade, que moravam nas zonas de risco, em condições precárias, e perderam tudo. Porque nessas horas, claro, os mais pobres perdem muito mais e sofrem muito mais. E agora chegou o frio. Ainda por cima vão enfrentar o frio rigoroso do inverno gaúcho.
Essa tragédia causa uma ruptura para a cidade e sua memória, representada em seus prédios, museus, centro histórico?
A cidade pode ser reconstruída. As vidas perdidas, essas não podem. E as memórias também – tem gente que perdeu fotografias, álbuns de família, documentos. Mas a cidade vai ser reconstruída, e temos que reconstruir de outro jeito. Temos que repensar a cidade. As pessoas não vão querer voltar, construir coisas, planejar um futuro em um lugar que pode ser destruído de novo daqui a pouco. Temos que repensar tudo.
Diante dessa perspectiva de reconstrução, assusta pensar no que as mudanças climáticas podem trazer de imprevisível, de inesperado?
Temos que repensar o que chamamos de inesperado. Na verdade, era esperado. Há anos que o governo relaxa as leis de proteção ambiental, das matas ciliares. Que dá incentivos para o carvão. Está permitindo cada vez mais desmatamento. Só andamos para trás nesse sentido, no Rio Grande do Sul também, há muito tempo.
No momento em que o Porto Alegre está embaixo d’água, o Congresso tem um projeto de lei que me deixa abismado. Na Amazônia, a lei diz que o proprietário só pode desmatar 20% do terreno e tem que manter 80% de floresta. Há um projeto para mudar isso para 50%-50%. Se com a lei atual já se destrói desse jeito, imagina o que vai acontecer com a Amazônia se aumentar a margem legal para 50%?
Estão fazendo isso, e chove no Sul. Chove torrencialmente. Tudo está ligado. A Amazônia e o Sul estão ligados por uma corrente de ar úmido que vem do Norte. O que acontece na Amazônia acontece aqui. Acontece no mundo inteiro.
Porto Alegre tem um histórico de alagamentos, e tem um sistema de proteção para drenar água e evitar enchentes. O sistema falhou?
Houve descaso e despreparo, e falta de manutenção do sistema de diques e bombas para proteger a cidade. Quando alagou, não funcionaram. Chegamos a ter só quatro das 23 casas de bombas funcionando.
Houve um momento que nos marcou muito aqui. A água entre o muro e a cidade estava em um nível maior do que a água entre o muro e o rio. Ou seja, o muro estava impedindo que o centro da cidade esvaziasse. Em vez de proteger a cidade do rio, ele funcionou como um aquário.
Não era inesperado. Aconteceu em 1941 e veio a acontecer agora. Mas, agora, já aconteceu três vezes – duas no ano passado, e agora ainda pior.
Os gaúchos, que sabem que aconteceu em 2023 e estão vendo que aconteceu em 2024, estão bastante preocupados com o que possa vir a acontecer em 2025. Pode ser que demore – tomara – para acontecer de novo. Mas pode acontecer de novo.
O senhor acha que a proporção dessa catástrofe pode ajudar a determinar um ponto de inflexão na política, no Congresso, onde os temas ambientais são defendidos por uma absoluta minoria?
As pessoas não se importam em proteger as florestas, os rios. Querem vender soja, arroz e trigo, ou seja o que for, no mês que vem, na semana que vem, para a China. O imediatismo que visa o lucro não pensa que estamos destruindo a própria fonte do lucro. O agronegócio, que é poderosíssimo e sustenta o país em grande parte, pode estar dando um tiro no pé. O Rio Grande do Sul pode se tornar um lugar inviável, para o negócio deles, inclusive.
Temos que pensar nisso. Não é só pensar na sobrevivência do planeta e nos nossos filhos e netos. É pensar também na economia do estado.
E no setor cultural? Como as pessoas que trabalham com cinema, teatro e outras áreas estão lidando?
O que a gente faz nessas horas? A gente se une, porque a tribo da arte é muito unida. Todo mundo está ajudando e se mobilizando como pode, abrigando pessoas, fazendo clipes e vídeos para impulsionar vaquinhas e pedir doações. As pessoas precisam de água, roupas, comida, abrigo, inclusive do nosso meio. Conheço várias pessoas da produção que perderam tudo. Casa com água no teto.
O Caetano e a Bethânia gravaram o Menino Deus, uma música que fala de Porto Alegre, e cederam os direitos chamando para uma vaquinha para os artistas do Rio Grande do Sul. Porque fazer teatro, filmar, fazer show… Tudo isso vai ser inviável por um bom tempo, não só pela água, mas pelo clima na cidade. O setor vai demorar para se recuperar. E quem perdeu tudo também vai ficar sem trabalho. Então, essas pessoas precisam de apoio.
O senhor é conhecido por trazer Porto Alegre para o cinema como cenário de seus filmes. As áreas em que filmou foram muito afetadas?
Todas. O homem que copiava se passa todo no Quarto Distrito – todas aquelas ruas, a Presidente Roosevelt, tudo ficou baixo de água. Em Meu tio matou um cara, todas as áreas em que a gente filmou, as cenas da beira do rio. O filme Ilha das Flores se passa na Ilha dos Marinheiros, que está submersa, assim como a Ilha das Flores e as outras ilhas do Guaíba.
O Saneamento Básico é um filme que filmamos em Santa Tereza, uma cidade perto de Bento Gonçalves. Ela foi muito afetada duas vezes no ano passado. E esse ano, agora, de novo. Luna Caliente eu filmei em Rio Pardo, São Lourenço do Sul. Tudo embaixo d’água. Atingiu uma parte muito grande do estado, muitos municípios.
É triste. Espero voltar para esses lugares e filmar de novo. Espero que eles se recuperem. Enfim, espero que passe, né? Espero que o George Harrison tenha razão. “Here comes the sun”. E está vindo, semana que vem vai ter sol.
O prolongamento dessa tragédia é assustador, porque é uma enchente chega e não passa. Como será superar isso?
Espero que a gente aproveite essa tragédia horrível, essa desgraça, para repensar a cidade e transformar Porto Alegre. Já que está destruído, vamos fazer direito, vamos fazer uma cidade mais sustentável, mais justa, uma cidade para o futuro, que pense as mudanças climáticas e esteja preparada para elas.
Porque elas já aconteceram. Nós não vamos reverter toda a destruição que fizemos no planeta em tão pouco tempo. Como vamos viver nesse novo planeta? Como vamos lidar com a água? Como vamos lidar com o transporte público, com a impermeabilização excessiva que fizemos do solo, com a ocupação de zonas de encostas e à beira do rio?
Precisamos repensar a cidade para ela ser durável, para não estarmos aqui de novo daqui a 10, 20 anos, dizendo que tudo se destruiu de novo. Isso pode ser uma oportunidade que São Pedro, padroeiro do Estado e senhor das chuvas, está nos dando.