Na entrada da aldeia dos índios Anacé, em Caucaia, no Ceará, o escritor Valter Hugo Mãe parou de frente para dois indígenas que estendiam uma faixa dando-lhe boas-vindas. Ao lado de Climério Anacé, esperou a chegada do cacique Antonio Anacé, o grande anfitrião do povo.

Calçado com chinelos, o escritor português nascido em Angola atravessou o córrego que separa a entrada da comunidade da área do encontro: um espaço delimitado por troncos, que servem de bancos, debaixo de um frondoso cajueiro.

A conversa de Valter Hugo Mãe com os indígenas fez parte da programação da 12ª Bienal Internacional do Livro do Ceará. Autor de títulos como O filho de mil homens e A máquina de fazer espanhóis, o escritor lotou os auditórios do Centro de Eventos, onde ocorre a feira, nas duas palestras que proferiu no último fim de semana.

Os índios Anacé receberam o visitante vestidos a caráter, com acessórios típicos da tribo, e antes de iniciar a conversa, dançaram, entoaram cantos e fizeram silêncio em memória dos antepassados da etnia.

A reverência foi reconhecida pelo escritor. “Sou muito pequeno para a grandeza de vossa causa. A sensação que tenho é que venho visitar o Brasil original. Vocês são de verdade os anfitriões do Brasil. Eu, sendo português, é muito simbólico, pois vocês estão aqui sem que vossa cultura tenha sido eliminada. Vocês são os proprietários desta terra, pois a respeitam.”

Em 2015, os Anacés ocuparam a terra onde vivem hoje. No entanto, reivindicam a posse de 8,7 mil hectares, e não só dos 3 hectares que habitam. Segundo dados da Fundação Nacional do Índio (Funai), o processo demarcatório das terras está em fase de estudo. O local é alvo de disputa com empresários do ramo imobiliário.

“Não é todo mundo que gosta de cacique, dizem que somos invasores, mas não somos. Estamos resgatando o que nos foi tomado. Vivemos aqui independentes da Funai”, disse o cacique Antonio Anacé, que também é escritor. Na época da retomada das terras, o líder da aldeia chegou a ser preso pela Polícia Militar.

Para Valter Hugo Mãe, os Anacés foram generosos ao expor sua identidade e ao passar a mensagem de que tentam resolver suas questões por meio da amizade. “Uma das coisas que ouvi de mais aflitiva foi que, eventualmente, a bala que mata um índio vem de um gabinete. Essa ideia é muito triste. Sempre concebi minha vida e minha obra como uma mensagem daqueles que não protagonizam o poder do mundo. Aceito e tenho honra de ser portador da voz dos índios brasileiros, que são quem significam este país.”

Brasil nos livros

Autor de histórias que se passam na Islândia (A Desumanização) e no Japão (Homens imprudentemente poéticos), Valter Hugo Mãe foi cobrado por leitores brasileiros a escrever uma obra ambientada no Brasil. Diante do pedido, o escrito revelou que a experiência com os Anacés talvez renda a caracterização de um índio em um projeto ainda em construção.

“Eles usam expressões que eu usei num livro meu quando dizem que as pessoas são plantadas [a expressão é usada no livro A desumanização]. Na minha vida, isso aconteceu por um efeito puramente poético e é quase como ver a literatura na vida real que eles tenham isso como expressão de sua espiritualidade e de sua visão do mundo.”

A 12ª Bienal Internacional do Livro do Ceará vai até o próximo domingo (23).