Segundo a ONU, 63 óbitos por desnutrição ocorreram em julho. “Fatos são inegáveis”, diz secretário-geral da organização. Mas autoridades israelenses rejeitam números relativos à falta de alimentos.O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, disse que não há “fome” nem “política de fome” em Gaza. Entretanto, a declaração, feita no último domingo (28/07), durante evento com uma rede de TV evangélica em Jerusalém, contrasta diametralmente com evidências vindas do enclave palestino.

Órgãos especializados, organizações humanitárias e testemunhas relatam uma crescente crise alimentar provocada pela guerra, particularmente no norte de Gaza.

A Classificação Integrada da Segurança Alimentar (IPC, na sigla em inglês) alertou que os limites da fome foram ultrapassados em partes do território, incluindo na cidade de Gaza. Segundo o órgão global de monitoramento da fome, se desenrola atualmente o “pior cenário possível”.

Já de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), 63 dentre 74 óbitos deste ano por desnutrição em Gaza ocorreram somente no mês de julho. Dentre os mortos, havia 24 crianças menores de cinco anos e 38 adultos.

“Os fatos estão aí, e são inegáveis”, afirmou o secretário-geral das Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres. “Os palestinos em Gaza estão enfrentando uma catástrofe humanitária de proporções épicas. Isso não é um aviso. É uma realidade que se desenrola diante dos nossos olhos.”

Uma em cada cinco crianças está desnutrida na Cidade de Gaza, com muitas delas “definhando”, segundo o chefe da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Médio (UNRWA)

Enquanto isso, os trabalhadores humanitários no local relatam que eles próprios estão passando fome, e o Ministério da Saúde de Gaza afirma que nas últimas três semanas dezenas de pessoas morreram por causas relacionadas à escassez de alimentos.

Eco nas redes sociais

Autoridades israelenses rejeitaram os números relativos à desnutrição e à fome divulgados pelas autoridades sanitárias de Gaza e pelos órgãos da ONU. O argumento é que os dados, alguns fornecidos pelo Hamas — grupo designado como organização terrorista por Israel, pela União Europeia e outros — carecem de credibilidade.

Os comentários de Netanyahu foram repetidos nas redes sociais por inúmeras personalidades e contas online que minimizam a gravidade da crise em Gaza ou afirmam que os relatos de fome generalizada são falsos.

Várias contas contestam fotos amplamente compartilhadas de crianças gravemente desnutridas em Gaza, alegando que as imagens são enganosas ou carecem de contexto.

“Essa é a versão oficial repetida pelo primeiro-ministro, seu gabinete e a mídia de extrema direita”, disse Oren Persico, jornalista do veículo independente israelense The Seventh Eye, à DW. “Eles negam que haja fome, culpam o Hamas por não se render ou até afirmam que isso é bom, porque supostamente ajuda a pavimentar o caminho para a construção de assentamentos judeus em Gaza.”

Israel impôs um bloqueio total de alimentos, combustível e outros suprimentos em março, e vários políticos, incluindo o próprio Netanyahu, afirmaram repetidamente que nenhum alimento entraria em Gaza.

O ministro das Finanças israelense, Bezalel Smotrich, disse em agosto de 2024 que “pode ser justificado e moral” permitir que Israel “faça com que 2 milhões de civis morram de fome” até que os reféns capturados em 7 de outubro de 2023 sejam retornados.

Mercado lotado de alimentos?

Um vídeo publicado por vários veículos de comunicação mostra um mercado de vegetais em funcionamento em Gaza. As imagens rapidamente se espalharam pelas mídias sociais, incluindo por contas que desafiam os relatos de fome no território palestino.

“Esta é uma filmagem de hoje no mercado Al-Sahaba, na cidade de Gaza, completamente lotado de alimentos. O habitante médio de Gaza come melhor do que você!”, escreveu uma conta.

A DW conversou com Majdi Fathi, o jornalista que gravou o vídeo. Ele confirmou que a filmagem é autêntica e mostra um mercado dentro de Gaza, mas acrescentou que isso não significa que haja alimentos disponíveis para todos.

“Esses vegetais e frutas são muito caros”, disse Fathi. “A maioria das pessoas em Gaza não tem condições de comprá-los. O que falta em Gaza são outros alimentos, como carne, leite, arroz e ovos. Não encontrei mais nada para filmar no mercado.”

Uma investigação da BBC descobriu que os pacotes de alimentos entregues por grupos de ajuda locais em Gaza muitas vezes carecem da variedade nutricional necessária para uma dieta saudável, levando a deficiências e problemas de saúde a longo prazo, mesmo quando as quantidades são adequadas.

“Até agora, carne, ovos, leite e outros itens essenciais não chegaram”, disse Fathi. “O problema também são os preços altos. Desde o início da guerra, muitas famílias não têm conseguido trabalhar e não têm renda para comprar alimentos.”

Desvio de ajuda humanitária

A recente decisão de Israel de permitir mais entregas de ajuda humanitária aliviou ligeiramente os preços em algumas áreas, mas o impacto continua a ser limitado.

Embora a ajuda se destine a ser distribuída gratuitamente, alguns suprimentos estão sendo armazenados, desviados ou revendidos.

Além disso, não há supervisão clara por parte dos grupos de ajuda humanitária, das autoridades locais ou das forças israelenses. Autoridades israelenses têm afirmado repetidamente que o Hamas é responsável pelo roubo dos recursos.

No entanto, o jornal americano The New York Times relata que autoridades militares israelenses confirmaram que não há evidências de que o Hamas tenha saqueado sistematicamente a ajuda humanitária da ONU – em vez disso, alegam roubos esporádicos por parte de atores menores, e não um desvio organizado pelo Hamas.

Entre 120 e 200 caminhões de ajuda humanitária entraram em Gaza no domingo, de acordo com estimativas da ONU. Mas autoridades humanitárias descreveram esses esforços como inadequados e, em alguns casos, perigosos para os civis no local que precisam recolher a ajuda.

Em apenas um dia de julho, pelo menos 73 pessoas morreram enquanto tentavam acessar ajuda em Gaza, informaram autoridades locais. Mais de 150 pessoas ficaram feridas, algumas delas, em estado crítico.

62 mil toneladas de ajuda ao mês

Enquanto isso, alguns países estão usando aviões para lançar ajuda por via aérea. Organizações criticam a medida como “simbólica” e “ineficaz” e dizem que só o reestabelecimento de rotas terrestres conseguirá conter a fome.

Aeronaves militares alemãs começaram nesta sexta-feira a lançar mantimentos, informou o Ministério da Defesa. Foram entregues quase 14 toneladas de alimentos e suprimentos médicos.

As Nações Unidas alertam que Gaza precisa de cerca de 62 mil toneladas de ajuda por mês para que os habitantes sobrevivam.

França, Reino Unido, Canadá e Portugal anunciaram nos últimos dias que avaliam reconhecer a Palestina como Estado. Os governos engrossam o coro de países ocidentais que pressionam Israel por um acordo de paz diante do agravamento da crise humanitária.