O empresário gaúcho Pedro Bartelle, CEO da Vulcabras (dona das marcas de calçados Olympikus, Mizuno e Under Armour), mergulhou na catástrofe climática do Rio Grande do Sul nas últimas semanas. Mergulhar não é força de expressão. Ao lado de outros grandes empresários do estado, ajudou no resgate de vítimas das enchentes em Porto Alegre com todos os instrumentos que tinha disponível: colocou na água barcos e jet-ski, transformou casa de veraneio em base de apoio para equipes de ajuda, doou combustível, colocou caminhões da empresa para distribuir doações e mantimentos. Nos bastidores, usou sua influência e networking no mundo empresarial para coordenar os esforços da iniciativa privada na reconstrução das áreas mais atingidas. Tudo para ajudar na maior crise já vivida pelo Rio Grande do Sul. “Não me lembro de ter visto nada parecido. Muito impressionante”, afirmou Bartelle, em entrevista à DINHEIRO. Mas as ações foram muito além disso. A Vulcabras criou um plano de apoio aos comerciantes prejudicados pelos alagamentos. Mais de meio milhão de pares de calçados, o equivalente a R$ 200 milhões, foram perdidos nos pontos de venda. Agora, segundo ele, o sentimento é de união e reconstrução. Confira, a seguir, sua entrevista:

DINHEIRO — A maior tragédia da história do Rio Grande do Sul tem sido comparada com a catástrofe do Furacão Katrina, em Nova Orleans, em 2005. Você concorda?
PEDRO BARTELLE — São diferentes nas características, mas iguais em alguns aspectos. Os estragos no Rio Grande do Sul cobrem uma área muito maior. Hoje saí de Porto Alegre pelo corredor humanitário e fui até Caxias do Sul para pegar um voo para São Paulo. Nos 120 quilômetros do trajeto por terra, poucos lugares não tiveram alguma alteração. Levei quase três horas. Onde havia rios, não se vê mais as margens. As plantas estão deitadas por onde passou a água. Muitos morros que nunca foram tocados pelo ser humano tiveram deslizamentos. Eu que sou Farroupilha, região de serra, não me lembro de ter visto nada parecido. Muito impressionante.

Qual será o impacto da destruição na indústria gaúcha?
Os impactos serão diferentes em cada setor. No caso da Vulcabras e do setor calçadista, os impactos serão menores em algumas empresas, maiores em outras. Isso porque 24% dos calçados produzidos no Brasil saem do Rio Grande do Sul. Mas apenas 5% do faturamento da Vulcabras vem de negócios feitos no estado. Temos fábricas na Bahia e no Ceará. Então, claro que haverá um impacto, com efeitos negativos sobre a produção, mas será menor do que o baque nas empresas que produzem calçados femininos, que são mais artesanais e estão mais concentrados lá. Mesmo assim, na nossa projeção, todas as fábricas de calçados no Rio Grande do Sul estarão a pleno vapor em 30 dias.

Mas vai resolver produzir, mesmo com problemas de logística, pontes destruídas, aeroporto interditado e parte do comércio ainda fechado?
O estado vai se reerguer. O esforço coordenado para recuperar o que foi destruído, com a união da iniciativa privada e dos governos, vai ajudar muito. Algumas estradas já estão sendo recuperadas. Hoje o grande problema tá em Porto Alegre, mais no nível do mar, onde alagou tudo. A serra sofreu muito, mas agora está em franca recuperação. Calculo que nos alagamentos das lojas perdemos algo em torno de meio milhão de pares, o equivalente a cerca de R$ 200 milhões. Em Porto Alegre, atendemos umas 2 mil lojas. Metade delas está debaixo d’água. Então, vamos perder 2%, 3% ou 4% do nosso faturamento. A gente ainda não sabe. Mas estamos trabalhando para tentar conseguir compensar esse faturamento com a produção em outros estados.

Como a Vulcabras vai ajudar os comerciantes prejudicados?
Suspendemos qualquer cobrança dos nossos clientes no Rio Grande do Sul e estamos montando uma estrutura para auxiliar as lojas. Vamos entregar condições especiais para recuperar os estoques. Muitas lojas têm seguros, mas sabemos que vai demorar para a roda voltar a girar. Então, estamos estudando aqui condições especiais e de produtos para dar algumas vantagens para essas lojas poderem se reerguer. E estamos fazendo uma grande mobilização para incentivar o Brasil a consumir produtos gaúchos. Por meio da Abicalçados [a associação do setor] estamos pensando em solicitar subsídios financeiros dos governos para ajudar nessa reconstrução das fábricas e do comércio que foram afetados.

A fábrica da Vulcabras não foi afetada?
Nossa unidade em Parobé fica em uma área alta, no início da subida da serra. Lá temos um centro de pesquisa e desenvolvimento, confecção de amostras e de matrizes, que emprega um pouco mais de 1 mil pessoas. A inteligência da empresa é ali. E não foi afetada pelas águas. Tivemos 35 famílias que trabalham com a gente com problemas grandes com a enchente. Mas rapidamente demos assistência a essas pessoas. Ajudamos a repor todas as perdas.

Como foi sua atuação na ajuda aos afetados pela enchente em Porto Alegre?
Junto com outros empresários, não paramos nos últimos dias. Colocamos à disposição barcos, ilhas e jet-ski. A gente mobilizou um grupo de empresários e montou na usina do gasômetro, que é um ponto do lago Guaíba, uma estrutura com combustível. Assim, com os jets e os barcos começamos a auxiliar em resgates. Muitos amigos e eu temos casa na região das ilhas. Tudo se transformou numa base de apoio. Nos primeiros dias a gente chegou a contabilizar 500 mil litros de combustível da iniciativa privada. Então, assim, fizemos uma mobilização grande para ajudar no salvamento.

O apelo para que as pessoas comprem e consumam produtos do Rio Grande do Sul vai ter algum efeito?
Olha, nunca passei por uma situação parecida com essa. Realmente, uma catástrofe tão grande. Mas também nunca tinha visto uma mobilização tão grande. A iniciativa privada tem se envolvido muito. Eu participo do Instituto Cultural Floresta, que é uma organização da sociedade civil liderada por empresários, e a gente conseguiu arrecadar muito dinheiro. A própria Abicalçados está numa campanha para ajudar a reconstruir casas. Então, acho que tem uma mobilização muito grande. Estamos recebendo doação de dinheiro de Mônaco, do Canadá, da Austrália… Então, pela mobilização que temos visto, não acho que será difícil motivar as pessoas a comprar produtos do Rio Grande do Sul.

Qual a sua avaliação do papel do governo federal, do estadual e prefeituras na coordenação das ações da enchente?
Falar de política num momento desse é algo muito delicado. Mas, no que participei, vi tanto a iniciativa pública quanto a privada querendo fazer. Ninguém ficou parado, salvo algumas exceções. Os governos foram incansáveis no trabalho. Todos tentando fazer. Mas o fato é que ninguém estava preparado para algo tão grande. Nosso estado não estava. A sociedade civil não estava. Nós mesmos, empresários, fizemos o que dava para fazer, mas precisávamos ter muito mais organização. Desde o início, principalmente agora, a gente tem que usar o músculo cérebro. A gente precisa de muita organização para fazer chegar as doações, para fazer com que esse dinheiro seja bem empregado para reconstruir tudo.

O setor espera algum ajuda do governo para reaquecer a economia do estado?
Esperamos que haja sensibilidade e alguma forma de ajudar a recuperar a economia gaúcha, sim. Isso pode ser em forma de redução de impostos ou mesmo de financiamento para as empresas e municípios mais atingidos. Se site chinês hoje não paga imposto, por que nós, na situação que estamos, devemos pagar? Nossa indústria é muito forte. O povo gaúcho, que eu conheço muito bem, é um povo muito trabalhador. Não podemos esquecer que a indústria calçadista é o quinto maior empregador da indústria de transformação do Brasil. É uma indústria resiliente, mas que sofre muito com a invasão de produtos chineses. Então, espero que os incentivos venham, pelo menos até que o Rio Grande do Sul se reorganize e que a máquina volte a girar.

O que será no pós-tragédia e como se preparar para as próximas enchentes, já que sabemos que esta não foi a última?
Tanto as pessoas quanto as empresas terão de se transferir para lugares mais seguros. Acho que vai mudar um pouco a geografia do Estado e das cidades. Vamos ter de nos reorganizar para instalar pessoas e empresas, principalmente na região metropolitana de Porto Alegre. Temos muitas regiões que sobreviveram, muitas regiões que foram preservadas. E isso vale não só para o Rio Grande do Sul. Não sou especialista em clima, mas posso relembrar o que aconteceu com a Amazônia no ano passado, que enfrentou a maior seca da história. Em qualquer lugar do mundo, não estamos imunes às mudanças climáticas. Precisamos nos preparar.

O Rio Grande do Sul não se preparou?
Porto Alegre se preparou depois da grande enchente de 1941. Cerca de 20 anos depois, na década de 1960, havia toda uma estrutura para proteger a cidade. Mas agora ninguém se preparou para um dilúvio desse tamanho. Antigamente, havia muito menos casas em áreas próximas da água. Os rios tinham um calado muito mais profundo. O assoreamento dos rios nos dias de hoje é um problema também. Então, as realidades mudaram. Temos de estudar alternativas para evitar problemas.

A maior feira do setor calçadista, a BFShow, foi realizada em São Paulo apesar do caos no Rio Grande do Sul. Como foi o clima do evento?
Conversei com o presidente da Abicalçados, o Haroldo Ferreira, para perguntar isso antes da feira. Ele me disse que todos os empresários do setor no Rio Grande do Sul iam dar um jeito. Até surgiu uma frase que ficou famosa lá, que ‘de ônibus, de avião ou a pé, os gaúchos vão para a feira’. Então, o clima da feira foi relativamente bom. Por mais que a gente esteja triste e decepcionado com tudo que está acontecendo, estamos com o sentimento de reconstrução do estado e de volta à normalidade. A feira é muito importante para que as empresas voltem a fazer negócios. A feira está aí para mostrar que a indústria é forte. Que o povo gaúcho é resiliente.