O ataque ao aeroporto de Bagdá, na quinta-feira 3, e, posteriormente, seu controle por tropas especiais americanas pode ter representado o princípio do último estágio da II Guerra do Golfo. De todo modo, os Estados Unidos ainda precisarão travar uma batalha importante, que, se vencida, efetivará o controle final da capital iraquiana: a conquista da população. Isso porque a presença estrangeira deve provocar um grande
choque cultural. E essa situação pode ser agravada caso
o governo Bush decida estender o modo de vida americano para a cidade. Lá não há lojas de telefone celular, nem montadoras de automóveis, sequer bancos privados ou qualquer outra espécie de empreendimento moderno.

A população, de quase 5 milhões de habitantes, atravessou os séculos vivendo num modelo onde o Estado é o senhor de tudo. Em Bagdá, há apenas um provedor de internet e ele também é estatal. E só é possível enviar e-mail com no máximo 500 Kb e para quatro pessoas. Mais do que isso, há o risco de a mensagem eletrônica esbarrar num ?muro de ferro?, já que o governo restringe e muito o uso da rede mundial de computadores. O atraso é tão grande que qualquer rede de fast-food ou filial de escritórios americanos enfrentará a resistência de consumidores acostumados com relações comerciais simples e milenares. Não há cartões de crédito. Pagar com cheque é muito raro até em negócios realizados entre empresas. Tudo é comprado em dinheiro vivo, o dinar ? que sofre com a taxa de inflação elevada ? ou trocado por outras mercadorias. ?As transações comerciais são feitas como num legítimo mercado persa?, diz o deputado federal Tarcísio Zimermann, do PT gaúcho, que visitou a capital iraquiana em fevereiro.

A rua é, portanto, o grande lugar de encontro de comerciantes e consumidores. O movimento começa bem cedo nas padarias ? que continuam abrindo pela manhã mesmo com a guerra, já que o abastecimento de farinha de trigo não foi interrompido. Em todo bairro e no centro há um mercado público, onde se vende alimentos e gêneros de primeira necessidade. Esse tipo de comércio é o que mais sofre com a escassez de mercadorias. Ao redor deles, muitas bancas comercializam roupas e calçados fabricados nas indústrias estatais iraquianas (elas absorvem pouco mais de 10% da população economicamente ativa do país e estão sendo ocupadas por tropas norte-americanas e inglesas). Também se vê ambulantes oferecendo artigos contrabandeados, como brinquedos, rádios e objetos de decoração, produzidos na China e em Taiwan. O tradicional comércio de tapetes orientais, roupas típicas, turbantes e objetos de metal sobrevive tal e qual como era desde que a cidade foi fundada. ?O artesanato de anéis, brincos, colares e broches preciosos, principalmente feitos em ouro, é bem desenvolvido?, afirma o deputado federal Jamil Murad (PC do B de São Paulo), estudioso do mundo árabe.

Carros brasileiros. A Iraq Foundation, uma ONG que trabalha
pela democracia e direitos humanos no país, estima que 81% da população economicamente ativa de Bagdá viva do mercado
informal de serviços. A economia formal, como hotéis, postos de combustível e frotas de táxis pertecem ao Estado, é claro. Até mesmo as raras lojas especializadas em venda de bebidas alcoólicas são públicas. Por sinal, não há bares, só casas de chá. Nos restaurantes, para beber uma taça de vinho, é necessário levar a garrafa de casa. Tal aspecto cultural leva a juventude a se divertir em portas de sorveterias, que, como outros pontos comerciais, ganham na simpatia do atendimento, mas deixam a dever na oferta variada de produtos.

Um cinturão verde ao redor de Bagdá, ao menos, fez a capital se distinguir economicamente das demais cidades do país. A agricultura representa 6% da atividade econômica. Há também rebanhos de carneiros, mas a produção de carne é rudimentar. O resultado de tudo isso: a economia de Bagdá é mais criativa do que organizada. A criatividade, em situações como a do povo iraquiano, é uma arma poderosa de sobrevivência. O comércio acabou se ajustando bem a uma população tão pobre, que tem 60% das pessoas sustentadas por ajudas humanitárias (US$ 120 per capita ao ano). É claro que cobrar pouco era uma característica fundamental da economia antes da guerra. Atualmente, os suprimentos são vendidos até quatro vezes mais caros.

Os poucos serviços de transporte urbano, por exemplo, aumentaram e muito seus valores. Uma viagem de ônibus de Bagdá até a Síria, subiu de 50 dólares para 600 dólares. As estradas e ferrovias, algumas construídas pela brasileira Mendes Júnior, estavam em bom estado antes da atual ação bélica. A presença da economia brasileira, inclusive, sofre menos resistência dos iraquianos do que qualquer outro país ocidental. A França também é vista com simpatia. A rádio iraquiana, quando não toca canções militares da década de 80, veicula músicas francesas. Mas são os ?brasileiros?, como são chamados os carros modelo Passat, exportados para o Iraque nas décadas de 70 e 80, que mais caíram no gosto da população de Bagdá. Eles fizeram um ótimo marketing dos nossos produtos e são mais cobiçados do que os lendários tapetes voadores da época de Ali Babá.