03/07/2020 - 12:06
Há três semanas, escrevi aqui sobre relação delicada que o Facebook tem com a verdade. Mark Zuckerberg havia declarado que não queria ser, em suas palavras, “o árbitro da verdade”. Sua justificativa é que, no mundo das redes sociais que ele ajudou a criar, o que é verdade para um, não é verdade para o outro. Na ilha da fantasia do Facebook, a verdade tem diversas versões.
Escrevi também que sua postura em se posicionar somente como condutor de conteúdo, sem ser minimamente responsável por ele, era um arranjo muito conveniente para a empresa no curto prazo. No entanto, permitir a divulgação de conteúdo mentiroso, exagerado, racista, homofóbico, de ódio e enviesado poderia trazer consequências bastante dolorosas no longo prazo.
A Covid-19, aceleradora de tendências que é, trouxe o longo prazo para bem mais perto. Desde a semana passada, empresas como Unilever, Coca Cola, Diageo, Honda, Pepsi, Starbucks, Microsoft, HP, Adidas e Reebok, entre outras, suspenderam as compras de anúncios na rede social. E isso parece ser apenas o começo. No século 19, o escritor francês Victor Hugo escreveu algo que soa como presságio: “Existe uma coisa mais forte que todos os exércitos do mundo: uma ideia cuja hora chegou”. Parece que a pandemia, seguida do brutal assassinato de George Floyd por um policial em Minneapolis, fizeram chegar a hora da ideia de que disseminar conteúdo mentiroso, de cunho potencialmente racista e enviesado pela internet, não é mais aceitável. Esse efeito dominó das empresas paralisando, mesmo que temporariamente, as compras de anúncios nas plataformas digitais vêm como uma resposta do ‘Corporate America’ às manifestações do movimento ‘Black Lives Matter’.
Tudo começou com mais uma polêmica em torno das eleições. Por conta da pandemia, cresceu a discussão sobre a opção do voto pelo correio nas próximas eleições, o que é perfeitamente legal nos Estados Unidos. O eleitor recebe a cédula de votação em casa, preenche com seu voto, sela o envelope e o envia de volta, sem precisar sair de casa.
De maneira geral, os republicanos são contra o voto pelo correio, pois alegam que a possibilidade de fraude é muito grande. Os democratas, por outro lado, são favoráveis: como o voto não é obrigatório, essa modalidade de votação poderia aumentar a base de eleitores democratas, reconhecidos por comparecerem em menor número às cabines de votação. O presidente americano, por meio do Twitter, declarou que o voto majoritário pelo correio abriria o leque para fraudes nas eleições. Foi a primeira vez que um tweet seu foi marcado pela plataforma como uma postagem com conteúdo potencialmente falso. Naturalmente isso provocou a ira de Donald Trump, que ameaçou a rede social com mudanças regulatórias. Foi aí que Zuckerberg decidiu que não queria comprar essa briga com o presidente americano – e reiterou que não policiaria o conteúdo em sua plataforma. Não queria arbitrar a verdade.
Ao se posicionar publicamente do lado de Trump e contra uma empresa do Vale do Silício, o líder do Facebook recebeu críticas internas de seus funcionários. A nuvem de gás já estava no ar, mas quem ateou o fogo foi o NAACP, a maior e mais proeminente organização em favor dos direitos civis dos cidadãos americanos: “Em 17 de junho, pedimos para que as empresas ajam contra o ódio e a desinformação espalhados pelo Facebook em nossa campanha ‘Stop Hate for Profit’. Pedimos aos anunciantes que temporariamente parem a compra de anúncios no Facebook e Instagram para forçar Mark Zuckerberg a tomar atitudes em relação ao efeito catastrófico que o Facebook tem em nossa sociedade”. Unilever foi a primeira, Verizon em seguida. E assim começou o dominó: a hora da ideia chegou.
Para o Facebook, em termos relativos, a perda de receita com os anúncios dessas companhias ainda é pequena. A empresa tem mais de oito milhões de clientes anunciantes – a grande maioria é formada por pequenas e médias empresas. Vamos descobrir, nas próximas semanas, se o movimento liderado pelas grandes será seguido pelas menores. Tomara que sim. O mercado, aparentemente, acha que não: a ação da empresa tomou um susto de 8% no final da semana passada, mas já se recuperou completamente. Quem ganha com tudo isso, a meu ver, são empresas que tomaram outra atitude desde o começo, em especial o Twitter. Acho também que a mídia tradicional, abandonada nos últimos anos, pode recuperar algum fôlego durante esses próximos meses com parte das verbas de marketing sendo redirecionadas.
Quem mais ganha com isso, na verdade, é o posicionamento ético. Gerenciar empresas visando o lucro, baseando a gestão em conceitos de credibilidade e confiança, sempre funciona. A mensagem do ‘Corporate America’ ao Facebook e a Zuckerberg é clara: não é possível continuar assim. Ainda bem. Cedo ou tarde, fazer o certo é uma ideia cuja hora sempre chega.