DINHEIRO ? Assim que o presidente Lula foi reeleito, voltou-se a falar sobre reforma fiscal. Desta vez, ela sai?
ROBERTO QUIROGA
? A grande dificuldade é que há uma grande confusão sobre o assunto. Todos falam em reforma fiscal e tributária há mais de 20 anos, mas cada um tem um significado para isso. No governo Fernando Henrique Cardoso, essa sanha baixou um pouco porque o secretário da Receita Federal Everardo Maciel direcionou os esforços para mudanças na legislação ordinária, e não na Constituição. O atual secretário da Receita, Jorge Rachid, manteve a política de arrecadação com a mesma competência. Isso levou o governo a uma situação relativamente cômoda do ponto de vista da receita tributária. Nunca, nos últimos 15 anos, o País teve uma situação tributária tão favorável como a atual.

DINHEIRO ? Qual a conseqüência disso?
QUIROGA
? A conseqüência é que o governo não quer a reforma tributária. Neste ano, até setembro, o governo arrecadou com tributos cerca de R$ 290 bilhões. Projetando esse resultado até o final do ano, o número atinge R$ 370 bilhões. Enfim, o governo tem mantido uma estabilidade (e até aumento) da receita tributária.

DINHEIRO ? Como ele conseguiu isso?
QUIROGA
? São basicamente quatro fatores. Um: a economia tem crescido. Timidamente, é verdade, mas puxa a arrecadação para cima. Dois: a Receita Federal reduziu a sonegação, com mais fiscalização, ações de impacto em empresas, como Schincariol e Daslu, e o acompanhamento da CPMF, que identifica movimentações financeiras atípicas. Três: o estoque de prejuízos das empresas praticamente desapareceu nos últimos anos, o que não permite a dedução nos impostos. O mesmo aconteceu com os grandes bancos que tinham muitos créditos fiscais oriundos de instituições que eles haviam comprado. E, por último: as empresas esgotaram recursos de planejamento tributário, pois os últimos governos fecharam as brechas que possibilitavam essas manobras.

DINHEIRO ? Se o governo não quer a reforma tributária, qual será a saída para essa questão?
QUIROGA
? O governo quer a reforma fiscal. Essa engloba alterações na ponta das receitas e na ponta das despesas. Mas mesmo aí existe uma controvérsia.

DINHEIRO ? Qual é?
QUIROGA
? Todos concordam em reduzir os gastos federais. Mas para os empresários da Fiesp, por exemplo, isso deve ser feito para que a carga tributária seja reduzida e se desonere a produção. Do ponto de vista do governo, a redução das despesas deve acontecer para que sobre dinheiro que possibilite o aumento dos investimentos públicos. Uma coisa é certa: o governo não baixará a carga tributária se não tiver certeza que pode reduzir as despesas.

 

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“O Everardo mudou leis para aumentar a arrecadação, sem mexer na estrutura de impostos” 

 

DINHEIRO ? Ou seja, a estrutura tributária confusa e a carga elevada vão permanecer?
QUIROGA
? Nos últimos 15 anos, o governo instituiu sistemas de tributação simplificados que se revelaram muito eficazes. É o caso do Simples e do pagamento de imposto de renda com base no lucro presumido. Neste mês, arrecadaram-se cerca de R$ 6 bilhões com esses dois sistemas. Para você ter uma idéia, de todas as pessoas jurídicas existentes no Brasil atualmente, cerca de 95% utilizam esses dois sistemas. Apenas 5% pagam com base no lucro real. Destes 5%, metade não tem lucro ou tem prejuízo e, portanto, não paga impostos. Logo, sobram 2,5% de todas as empresas no Brasil, e sabe quanto elas representam da arrecadação? 80% da arrecadação.

DINHEIRO ? Mas são esses 2,5% que se queixam da complexidade tributária do País. São mais de 50 impostos, taxas, contribuições.
QUIROGA
? O governo aprendeu a se movimentar com desenvoltura nesse sistema tributário complexo.

DINHEIRO ? As empresas, no entanto, estão sendo sufocadas por ele.
QUIROGA
? Nós estamos chegando a um momento em que tanto a complexidade como a carga tributária estão atingindo um nível insustentável. O empresário está corretíssimo. O governo apostou no seguinte: vamos deixar a complexidade e a carga alta para um grupo pequeno de empresas. Para você ter uma idéia, esses 2,5% representam entre três mil e cinco mil empresas, mas que são responsáveis por 80% da arrecadação federal.

DINHEIRO ? O que o governo ganha?
QUIROGA
? Ele tem infra-estrutura pequena para fiscalizar milhões de pessoas físicas e milhares de pessoas jurídicas. São apenas oito mil fiscais no Brasil inteiro. Então, ele deixa um grupo isolado, VIP, que arrecada muito. Em tese, funciona, mas durante um tempo.

DINHEIRO ? E depois?
QUIROGA
? Restou um grupo de cinco mil empresas com a responsabilidade da arrecadação no País. Qual o resultado? É um torniquete. Está estrangulando. Está chegando a um ponto que estrangula a área produtiva e o investimento. É uma questão econômica. Quando você começa a estrangular e acuar a principal fonte de renda, ou você cria uma válvula de escape ou o próprio mercado vai criar. A válvula de escape da sonegação não existe mais porque o governo foi fechando todas as portas para isso. Qual a válvula de escape? É a quebra. Hoje a válvula de escape da empresa é quebrar e deixar de investir no País e passar a viver de rendimentos financeiros. Hoje tem muito empresário que foi tão estrangulado que deixou a atividade produtiva, pegou seu dinheiro e foi investir fora do País. Se o governo não perceber que está chegando ao limite, pode perder tudo que conquistou nos últimos 12 anos.

 

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“O Gilberto Kassab é criticado por querer aumentar o IPTU em áreas nobres. Ele está certo”

 

DINHEIRO ? O governo terá essa sensibilidade?
QUIROGA
? Ele já percebeu. O Rachid promoveu algumas desonerações, como a isenção de Cofins nas operações financeiras destinadas às exportações. O governo se deu conta de que, se ele quer investimentos, não pode sangrar essas três a cinco mil empresas, o que é melhor para ele. Então, ele tem que mexer nisso. Não tem alternativa. Ele terá de mudar o que incide em cascata.

DINHEIRO ? Por exemplo?
QUIROGA
? Folha de pagamento. Faturamento, que é a Cofins e o PIS. Caso contrário, esse grupo limitado não conseguirá se sustentar.

 

DINHEIRO ? O sr. está sugerindo a extinção de impostos e taxas?
QUIROGA
? O que eu imagino em uma reforma federal? Primeiro: acabar com impostos com os quais você não arrecada nada. Vou dar um exemplo. O imposto sobre o crédito consignado. Hoje, temos IOF sobre isso. As alíquotas são pequenas e a arrecadação é mínima. Outro caso é o IPI, Imposto sobre Produtos Industrializados. É um tributo antigo, que está caindo em desuso. No mundo, a tendência é taxar cinco ou seis produtos, que arrecadam muito. Quais são? Bebidas, combustíveis, cigarros, veículos, etc.

DINHEIRO ? O aumento de carga tributária nesses produtos não torna mais atraente a sonegação, já que passa a valer a pena correr o risco? Isso ocorreu com o cigarro, um setor que enfrenta sonegação, falsificação e contrabando.
QUIROGA
? O Everardo Maciel falou isso quando passou a enfrentar esse problema. E ele começou a brigar com isso. No setor de bebidas, desenvolveu o marcador de vazão. Não se pode fazer uma reforma tributária desse tipo sem as correspondentes medidas de combate aos crimes que surjam a partir dessa reforma. Mas hoje a Receita tem que fiscalizar centenas e centenas de setores. Se reduzir o número de setores a cinco ou seis, esse trabalho se torna mais eficiente. Joga toda a força da fiscalização sobre eles. Por isso, o que mede os sistemas tributários é a eficiência.

DINHEIRO ? Mas a concentração nesses cinco ou seis setores não criaria a mesma situação de estrangulamento enfrentada por aquelas cinco mil empresas?
QUIROGA
? Não, na realidade ninguém deixaria de pagar os tributos federais. A grande maioria se tornaria contribuinte indireto. Esses poucos setores seriam o canal por onde a arrecadação chegaria ao governo federal. Outra idéia é ter um tributo sobre comércio exterior. Os problemas que o País enfrenta constantemente como subfaturamento de importação se devem ao sistema arcaico que temos. Precisaria estabelecer preços mínimos e máximos para cada produto. Qualquer coisa acima dessa faixa é superfaturamento. Qualquer coisa abaixo é subfaturamento.

DINHEIRO ? O governo e o Congresso mexeriam em questões tão polêmicas?
QUIROGA
? Não há como evitar. Existem inclusive questões mais delicadas, como a do imposto sobre grandes fortunas, a taxação sobre o patrimônio. No Brasil, se arrecada de 1% a 2% do PIB de imposto sobre o patrimônio, o que é pouco diante do que se pratica no restante do mundo. Por que nos EUA se faz tanta doação? Porque quando o sujeito morrer, a taxação da fortuna dele atinge 50%. Então, ele doa em vida. O assunto é delicado, mas esse imposto é um instrumento de transferência muito importante.

DINHEIRO ? Há quem diga que o maior defensor desse imposto é o prefeito de Miami, pois haveria uma fuga de capitais imediatamente após a aprovação da lei.
QUIROGA
? Não acho. O que a pessoa vai fazer? Investir lá fora? Hoje o trânsito de dinheiro no mundo é muito mais difícil. Há leis rígidas contra a lavagem de dinheiro. Sistemas eletrônicos monitoram a movimentação de capital o tempo todo. Mas não sou a favor de um imposto sobre grandes fortunas como é praticado em outras partes do mundo, pois isso assustaria os empresários e a arrecadação seria pequena. O que precisamos é criar formas de taxar o patrimônio. O prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, enviou um projeto de lei para a Câmara de Vereadores que aumentará o IPTU de áreas nobres. Nada mais justo. Aqueles que moram em regiões mais valorizadas devem pagar mais. Já o imposto sobre grandes fortunas tem mais um conteúdo demagógico do que uma realidade de arrecadação. Precisa criar uma cultura de tributação de patrimônio. Critica-se isso, mas é justo.

DINHEIRO ? Há um movimento falando em flexibilização da lei de responsabilidade fiscal. O que o sr. acha?
QUIROGA
? É um grande equívoco, pois na origem dessa proposta está a compensação dos Estados por parte do governo federal, uma questão que se arrasta desde a Lei Kandir. Compensação de impostos se faz com impostos, não com responsabilidade fiscal. Essa proposta acende um sinal amarelo.