Em meados de agosto, quando o Itamaraty preparava a primeira cúpula da Comunidade Sul-Americana de Nações, o presidente Lula recebeu um telefonema do colega Néstor Kirchner. Interrompido em uma reunião com ministros, irritado com as especulações de que Kirchner boicotaria o encontro arquitetado pelo Brasil, Lula disparou: ?E o que lá eu quero falar com o Kirchner ?? Um dos assessores, assustado com a reação do presidente, ponderou: ?Mas presidente, é o presidente da Argentina.? Lula vacilou. ?Vai lá, me traga o Kirchner?, concedeu. Minutos depois, tendo conversado amenamente com o colega, desligou o telefone e desabafou: ?Não agüento mais esse cara.? Essa cena, relatada a DINHEIRO por uma das testemunhas, resume o triste estado das relações presidenciais entre Brasil e Argentina no momento em que o Mercosul completa 20 anos. Na quarta-feira passada, dia 30, quando os dois presidentes se encontraram na cidade argentina de Puerto Iguazu para celebrar o aniversário de lançamento do Bloco, havia sobre a mesa de negociações um vasto e complexo contencioso ? que, além de comercial e diplomático, tem também caráter emocional. ?Os dois presidentes não têm uma relação amistosa?, resume Roberto Gianetti da Fonseca, do departamento de Comércio Exterior da Fiesp. O analista argentino Roberto Bacman percebe a mesma situação. ?Existe um grande distanciamento afetivo entre Lula e Kirchner?, diz ele.

Como se trata de dois presidentes, ambos com considerável influência sobre a política externa de seus países, a falta de química e os ciúmes entre eles afeta profundamente o metabolismo do Mercosul. Em Puerto Iguazu, por exemplo, os dois foram incapazes de limar as divergências que cercam a adoção de salvaguardas contra desequilíbrios comerciais. Trata-se, na verdade, de um mecanismo que permite barrar a entrada de manufaturados brasileiros na Argentina quando os produtores locais se sentirem ameaçados. Os industriais brasileiros são visceralmente contrários à medida, que é vista por seus colegas argentinos como essencial. O Brasil tem com a Argentina
um superávit comercial de US$ 3 bilhões até outubro deste ano. É o dobro do superávit
de 2004. A solução para esse impasse deveria ter sido encontrada pelos presidentes, mas, na falta dela, o acordo teve de ser adiado para janeiro de 2006. Um outro problema que assombra o Bloco chama-se Hugo Chávez, o presidente da Venezuela. Lula parece cansado das diatribes anti-americanas do coronel e tem dito pelos canais diplomáticos que não o quer à volta quando isso puder ser evitado. Mas Kirchner, que tem contas a ajustar com o governo americano e com o Fundo Monetário Internacional, resolveu adotar o líder da ?revolução bolivariana? como seu amigo do peito, desafiando a liderança informal do Brasil na região. Liderança, aliás, que os argentinos chamam de ?aspiração imperial? e que mal e mal toleram. Lula claramente ressente-se desse comportamento.

Quem lesse os 23 itens acordados no encontro da semana passada, presenciasse os abraços para os fotógrafos ou escutasse as declarações do presidente Lula na ocasião, não perceberia a distância entre os dois líderes. Assim como seus antecessores, Lula adotou a postura de responder às malcriações dos argentinos com seguidas concessões verbais. Kirchner já chegou a falar ao celular enquanto Lula discursava, em ostensiva demonstração de indiferença, e até mandou rascunhar um plano alternativo à proposta de luta contra a fome levada à ONU pelo Brasil. Mas como sabe que os vizinhos estão apavorados com o desaparecimento da sua indústria, Lula garantiu na semana passada que ?ao Brasil interessa que a Argentina tenha uma indústria forte e um alto nível de produtividade?. E como virou as costas a Kirchner quando ele precisava de apoio para enfrentar o FMI, causando imenso dissabor ao presidente argentino, Lula faz agora declarações que dão a impressão de que o Brasil suporta os vizinhos na sua queda de braço com o Fundo. ?Apoiamos as negociações da Argentina com o FMI para garantir o crescimento econômico de precisa e exige?, disse Lula. Esse expediente, o da contemporização que encobre conflitos, não vai funcionar para sempre. Aliás, já não está funcionando. Aos 20 anos, o Mercosul deveria ser uma unidade econômica mais sólida e um agrupamento diplomático mais coeso do que é. Para mudar esse cenário, em nome de seus dois países, seria bom que Lula e Kirchner suspendessem a birra.

A mordida de Felisa
Quem é a nova ministra da economia da Argentina, que vai priorizar o crescimento

Vinda da Argentina, a melhor notícia que chegou ao Palácio do Planalto na semana passada foi a queda de Roberto Lavagna, ministro da Economia. ?Ele representava grande parte dos nossos problemas no Mercosul?, explicou o ministro Antônio Palocci, da Fazenda, a um alarmado presidente Lula. Lavagna era o patrono de todas as queixas empresariais argentinas contra a ?invasão? de produtos brasileiros. Para substituir o homem que comandou o bem-sucedido calote da dívida externa, o presidente Néstor Kirchner, que havia herdado Lavagna da administração anterior e não se dava com ele, indicou uma mulher: a economista Felisa Miceli, 51 anos, casada e mãe de três filhos. É a primeira a ocupar esse posto na Argentina. ?Nunca vi um artigo que ela tenha escrito, não sei o que pensa. Para mim é uma incógnita?, afirma o economista Ricardo Schefer, do Centro de Estudos Macroeconômicos de Buenos Aires. ?O que se comenta é que não vai mudar nada na política econômica.?

Auto-definida como ?um soldado de Kirchner?, Felisa é especialista em políticas sociais e seu último trabalho foi como presidente do banco La Nación, estatal. É uma administradora mais que uma teórica. Claramente compartilha com Kirchner a idéia de que o mais importante para a Argentina é o crescimento, a criação de empregos e a divisão da renda. Inflação vem depois. No Brasil, na semana passada, circulou a idéia de que Lavagna havia caído porque queria combater a inflação com cortes nos gastos e juros mais altos. Os analistas argentinos acham isso meia verdade. Dizem que Kirchner já é austero em relação aos gastos públicos e que ninguém na Argentina, muito menos Lavagna, pensava em elevar os juros. ?O trauma da recessão aqui foi muito forte e ainda não terminou?, diz Schefer. ?O país quer crescimento.? Quer e tem. A economia dispara ao ritmo de 8% ao ano e Buenos Aires vive um boom de consumo. As lojas estão cheias porque o emprego e a renda aumentaram. A inflação, que está em 11% anualizada, resulta efetivamente do crescimento da demanda. E os investimentos que poderiam mitigar o problema parecem estar sendo feitos, mas os indicadores são inconclusivos. Esse é o cenário que aguarda a nova ministra.

O mercado reagiu mal à sua figura sorridente. O dólar subiu a 3,02 pesos e o índice da Bolsa portenha caiu 4,2%. A desconfiança baseia-se nas suas afirmações com respeito à inflação. Em outubro, falando ao diário Página 12, ela disse: ?Necessariamente devemos passar por uma inflação um pouquinho maior do que a desejada, mas é isso ou a paz dos cemitérios. É a receita do Fundo Monetário Internacional. Suas teorias são de um simplismo que espanta. Só levam à recessão, ao desemprego e ao fechamento das empresas.? Ela também acredita que inflação ?é um argumento para manter os salários baixos? e pergunta: ?Se não houver ajustes de salários como distribuiremos melhor a renda?? É como se a ministra Dilma Roussef tivesse subitamente assumido em lugar de Antonio Palocci. A questão agora é saber se uma ministra com opiniões tão divergentes da cartilha liberal vai sobreviver às pressões do mercado. E se vai conseguir agradar o chefe temperamental refreando a inflação sem esfriar a economia. Se lograr isso tudo, ela irá expor, novamente, as limitações do modelo econômico adotado para o Brasil.