07/12/2005 - 8:00
Em meados de agosto, quando o Itamaraty preparava a primeira cúpula da Comunidade Sul-Americana de Nações, o presidente Lula recebeu um telefonema do colega Néstor Kirchner. Interrompido em uma reunião com ministros, irritado com as especulações de que Kirchner boicotaria o encontro arquitetado pelo Brasil, Lula disparou: ?E o que lá eu quero falar com o Kirchner ?? Um dos assessores, assustado com a reação do presidente, ponderou: ?Mas presidente, é o presidente da Argentina.? Lula vacilou. ?Vai lá, me traga o Kirchner?, concedeu. Minutos depois, tendo conversado amenamente com o colega, desligou o telefone e desabafou: ?Não agüento mais esse cara.? Essa cena, relatada a DINHEIRO por uma das testemunhas, resume o triste estado das relações presidenciais entre Brasil e Argentina no momento em que o Mercosul completa 20 anos. Na quarta-feira passada, dia 30, quando os dois presidentes se encontraram na cidade argentina de Puerto Iguazu para celebrar o aniversário de lançamento do Bloco, havia sobre a mesa de negociações um vasto e complexo contencioso ? que, além de comercial e diplomático, tem também caráter emocional. ?Os dois presidentes não têm uma relação amistosa?, resume Roberto Gianetti da Fonseca, do departamento de Comércio Exterior da Fiesp. O analista argentino Roberto Bacman percebe a mesma situação. ?Existe um grande distanciamento afetivo entre Lula e Kirchner?, diz ele.
Como se trata de dois presidentes, ambos com considerável influência sobre a política externa de seus países, a falta de química e os ciúmes entre eles afeta profundamente o metabolismo do Mercosul. Em Puerto Iguazu, por exemplo, os dois foram incapazes de limar as divergências que cercam a adoção de salvaguardas contra desequilíbrios comerciais. Trata-se, na verdade, de um mecanismo que permite barrar a entrada de manufaturados brasileiros na Argentina quando os produtores locais se sentirem ameaçados. Os industriais brasileiros são visceralmente contrários à medida, que é vista por seus colegas argentinos como essencial. O Brasil tem com a Argentina
um superávit comercial de US$ 3 bilhões até outubro deste ano. É o dobro do superávit
de 2004. A solução para esse impasse deveria ter sido encontrada pelos presidentes, mas, na falta dela, o acordo teve de ser adiado para janeiro de 2006. Um outro problema que assombra o Bloco chama-se Hugo Chávez, o presidente da Venezuela. Lula parece cansado das diatribes anti-americanas do coronel e tem dito pelos canais diplomáticos que não o quer à volta quando isso puder ser evitado. Mas Kirchner, que tem contas a ajustar com o governo americano e com o Fundo Monetário Internacional, resolveu adotar o líder da ?revolução bolivariana? como seu amigo do peito, desafiando a liderança informal do Brasil na região. Liderança, aliás, que os argentinos chamam de ?aspiração imperial? e que mal e mal toleram. Lula claramente ressente-se desse comportamento.
Quem lesse os 23 itens acordados no encontro da semana passada, presenciasse os abraços para os fotógrafos ou escutasse as declarações do presidente Lula na ocasião, não perceberia a distância entre os dois líderes. Assim como seus antecessores, Lula adotou a postura de responder às malcriações dos argentinos com seguidas concessões verbais. Kirchner já chegou a falar ao celular enquanto Lula discursava, em ostensiva demonstração de indiferença, e até mandou rascunhar um plano alternativo à proposta de luta contra a fome levada à ONU pelo Brasil. Mas como sabe que os vizinhos estão apavorados com o desaparecimento da sua indústria, Lula garantiu na semana passada que ?ao Brasil interessa que a Argentina tenha uma indústria forte e um alto nível de produtividade?. E como virou as costas a Kirchner quando ele precisava de apoio para enfrentar o FMI, causando imenso dissabor ao presidente argentino, Lula faz agora declarações que dão a impressão de que o Brasil suporta os vizinhos na sua queda de braço com o Fundo. ?Apoiamos as negociações da Argentina com o FMI para garantir o crescimento econômico de precisa e exige?, disse Lula. Esse expediente, o da contemporização que encobre conflitos, não vai funcionar para sempre. Aliás, já não está funcionando. Aos 20 anos, o Mercosul deveria ser uma unidade econômica mais sólida e um agrupamento diplomático mais coeso do que é. Para mudar esse cenário, em nome de seus dois países, seria bom que Lula e Kirchner suspendessem a birra. ![]()