Duas semanas atrás, a Vale do Rio Doce apresentou em Nova York seu plano de investir US$ 59 bilhões até 2012. Serão 30 projetos simultâneos, em países como Brasil, Peru, Chile, Austrália, Canadá, Moçambique e Omã, que podem transformar a empresa brasileira na maior mineradora do mundo. Na platéia, uma senhora discreta, de 43 anos, acompanhou com atenção a fala de Roger Agnelli, presidente da Vale, que, no mesmo dia, tocou o sino da bolsa de valores de Nova York. Era Joana Farquhar, nora e herdeira do lendário empreendedor americano Percival Farquhar, que foi dono da Itabira Iron Ore, posteriormente chamada de Companhia Brasileira de Mineração, antes de dar origem à própria.

Vale. Joana, que vive há mais de vinte anos nos Estados Unidos, pensou em se aproximar de Agnelli, mas, tímida, não teve coragem. Queria falar de uma ação bilionária que corre na Justiça brasileira desde 1967 e que já foi decidida em favor da família Farquhar e de outros acionistas da antiga CBM em junho de 1984, pelo Supremo Tribunal Federal. Desde então, a ação ? que é movida contra a União Federal e não contra a Vale ? encontra-se em fase de execução. O que está em jogo é a entrega de uma soma de ações que representaria, segundo os advogados de Joana, 3,5% do capital da Vale, uma empresa com valor de mercado de US$ 165 bilhões. Portanto, seriam US$ 5,5 bilhões, dos quais 60%, cerca de US$ 3,3 bilhões, caberiam a Joana, única herdeira viva de Farquhar. ?O processo demorou tanto que os outros herdeiros foram morrendo?, disse ela à DINHEIRO, de Long Island, nos arredores de Nova York, onde vive.

Joana, que não se deixou fotografar, foi casada com Donald, um dos três filhos de Percival com a esposa Cathya. Os outros dois, George e Gordon, já faleceram e não deixaram filhos. Donald, por sua vez, morreu aos 74 anos, na cidade de Timóteo, em Minas Gerais, em 1995. ?Ele ficou muito desgostoso com o Brasil?, diz Joana. Na verdade, era Donald, que a conheceu dando aulas de inglês no interior de Minas, quem tentava acompanhar mais de perto o processo, no qual já atuaram alguns dos principais advogados do País, como Miguel Seabra Fagundes, Álvaro Leite Guimarães e Cláudio Lacombe. Quando a ação foi ganha definitivamente, em 1984, o voto decisivo no STF foi dado pelo então ministro Oscar Dias Corrêa. Com isso, a União foi condenada a entregar aos antigos acionistas da Companhia Brasileira de Mineração o equivalente a 7 mil ações originárias da Vale, que foi criada por decreto pelo ex-presidente Getúlio Vargas, em 1942. ?Temos de reparar uma injustiça histórica?, diz o consultor brasileiro Marcos André, da empresa Stratagem, de Nova York, contratado por Joana. ?Além das ações, há também os dividendos de mais de 60 anos?, diz ele.

No Brasil, Joana também contratou a advogada Maria Angélica do Nascimento Faria, do Rio de Janeiro, que, neste momento, trata de habilitar a nora de Percival Farquhar no processo, como legítima herdeira de Donald. ?A ação ficou parada porque não só os proponentes, como vários advogados, foram morrendo no decorrer dos anos?, diz Angélica. Toda essa demora, naturalmente, joga a favor do devedor, que é a própria União, que sempre fez o possível para retardar a execução da dívida. Já em janeiro de 1985, a Justiça notificou o então presidente da Vale, Eliezer Batista, para que a empresa indicasse o valor devido aos antigos acionistas. Eliezer apontou várias dificuldades técnicas, o que impôs a necessidade de uma perícia judicial. Ao longo dos anos, esse trabalho foi sendo retardado por uma série de fatores ? desde os honorários a serem pagos até o fato de um perito ter sido vítima do mal de Alzheimer. E mesmo o sumiço de parte dos autos processuais chegou a ser usado como argumento pela defesa da União para empurrar o assunto por mais alguns anos.

DINHEIRO teve acesso à íntegra do processo. O que ele revela não é apenas a morosidade da Justiça brasileira, mas também os bastidores de um momento relevante da história brasileira. Em 1911, Percival Farquhar adquiriu a empresa Itabira Iron Ore Company, que pertencia a investidores ingleses e detinha a maior parte das ações da Estrada de Ferro Vitória-Minas ? até hoje, o coração do sistema logístico da Vale do Rio Doce. O plano de Farquhar, um visionário que fez vários outros investimentos em infra-estrutura no Brasil e foi retratado na minissérie Mad Maria, era transportar o minério à costa capixaba, onde ele construiria uma siderúrgica, para exportar o ferro já transformado em aço. No entanto, pelo fato de ser norte-americano, ele sofreu feroz oposição de governos nacionalistas, como os de Arthur Bernardes e Getúlio Vargas. Em 1942, num momento crítico da Segunda Guerra Mundial, quando o conflito ainda não estava decidido, a Inglaterra passou a demandar muito mais minério de ferro, num ritmo maior do que a Companhia Brasileira de Mineração era capaz de suportar. Foi então que o Brasil assinou o Acordo de Washington, no qual os Estados Unidos se comprometiam a financiar a criação da Companhia Siderúrgica Nacional. Foi só depois disso que Vargas, pragmático, decidiu encampar as empresas de Percival Farquhar, comprometendo-se a pagar indenização em dinheiro e a entregar as 7 mil ações do capital inicial da Vale do Rio Doce, fundada no mesmo ano. A primeira parte do acordo com Farquhar, Vargas cumpriu. A segunda, não. E é esse fantasma que pode agora voltar a assombrar a União.