04/12/2024 - 22:30
Administradores judiciais (AJs), com anuência de juízes de varas de falências, têm se valido da contratação sem licitação de escritórios de advocacia para identificar e responsabilizar solidariamente terceiros em processos de falência ou recuperação judicial (RJ). Conhecido como Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ), o instrumento – que é legítimo e visa ressarcir credores de massas falidas – tem sido amplamente utilizado visando a busca de acordo com empresas a fim de obter acordos milionários, engordando a remuneração dos prestadores de serviços, mediante comissões de 5% no caso de AJs, até 30% para os próprios escritórios.
Alguns casos envolvem inclusive a transnacionalização de jurisdição em outros países ou falências que se estendem há décadas na Justiça brasileira. O método se apoia na fragilidade contábil das empresas em processo de falência, valendo-se de processos sigilosos, quebra do sigilo de terceiros e obtenção de informações seletivas sem a garantia do contraditório, uma vez que não são obrigatoriamente submetidos a perícia ou investigação por solicitação do juiz do caso.
O objetivo é estender os efeitos da falência a esses terceiros, resultando no bloqueio de bens e na ameaça de responsabilização por todo o passivo da falência. O contexto faz com que os acusados acabem cedendo a acordos envolvendo o pagamento de cifras milionárias aos AJs. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem investigado denúncias de abuso da desconsideração de personalidade jurídica, em prejuízo de empresas processadas e levadas a acordo judiciais.
JBS e Tinto Holding
Um dos casos mais recentes relacionados ao dispositivo do IDPJ envolve a JBS. A empresa dos irmãos Joesley e Wesley Batista obteve vitória parcial no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) para não responder à Corte Americana do Distrito Sul da Flórida (EUA) no âmbito do processo da recuperação judicial da Tinto Holding, pertencente ao antigo Grupo Bertin, hoje renomeado como Grupo Heber. A Istoé teve acesso à decisão monocrática proferida em segunda instância, na sexta-feira (22), pelo do desembargador Rui Cascaldi, da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP.
Ele acatou agravo de instrumento da JBS para suspender a tentativa da administradora judicial da massa falida da Tinto Holding, a AJ Ruiz Consultoria Empresarial S.A., de arrolar empresa dos Batista como parte responsável por prejuízos que teriam levado a companhia da família Bertin a acumular dívidas de cerca de R$ 5,8 bilhões sendo quase R$ 3 bilhões em pendências tributárias.
O magistrado ressaltou que o processo foi rejeitado pela Justiça norte-americana e que, portanto, deveria correr no Brasil. “Não verifico justificativa para insistir com o procedimento, custoso, já extinto por aquela Corte, que não viu justificativa para a escolha de um tribunal americano para aplicação da lei brasileira, nem vislumbrou teoria legal para desfazer a transferência acionária concluída 15 anos atrás, no Brasil, com partes e ativos brasileiros, obstáculos, em princípio, intransponíveis”, afirmou Cascaldi. Credora convertida em devedora, a JBS solicitou habilitação para recuperar crédito de cerca de R$ 1,1 bilhão, alegando ter pago este valor em dívidas tributárias descobertas após a incorporação dos frigoríficos da família Bertin, em 2009. As dívidas não faziam parte da transação responsável por transformar a JBS na maior produtora de proteína animal do mundo.
Agro em falência
A falência da Tinto Holding, que administrava frigoríficos da família Bertin, expõe o cenário adverso experimentado pelo agronegócio. A Serasa Experian registrou aumento de 40,7% no número de pedidos no terceiro trimestre deste ano entre produtores rurais e empresas do ramo agropecuário. Foi de olho nesse setor que o governo Lula enviou, no início deste ano, um projeto de lei (PL 3/2024) para modernizar a Lei de Falências (n⁰ 11.101/2005), que completa 20 anos em fevereiro.
O projeto prevê, como uma das principais ações, a redução em 50% do tempo médio de processo de recuperação judicial e falência de cerca de dez anos. O texto já foi aprovado na Câmara dos Deputados e aguarda, desde abril, o Senado definir relator e comissão. Enquanto isso, uma série de processos seguem se arrastando em varas judiciais país afora. Mas não é só a celeridade que precisa ser aprimorada. O uso desenfreado de IDPJs e a falta de regulação na contratação de prestadores de serviço pelos AJs desincentiva investidores de se relacionarem com empresas em crise.
Um caso emblemático de lentidão e uso de IDPJ foi a recuperação judicial Fazendas Reunidas Boi Gordo, cuja falência havia sido decretada em 2004, após o estouro de um escândalo de pirâmide que levou a um prejuízo de R$ 2,5 bilhões a cerca de 30 mil investidores. Em junho, uma fazenda no Mato Grosso foi vendida em leilão por R$ 24,5 milhões, para ressarcir credores. O processo segue na Justiça paulista.
Outros casos notórios que se arrastam na Justiça envolvem o setor sucroalcooleiro. Das 446 usinas instaladas de açúcar e álcool instaladas no Brasil, 24% (107) ou estão em processo de recuperação judicial ou com falência decretada. Desse total, 57 estão com as atividades paralisadas.
Aqui, o IDPJ vem sendo amplamente utilizado por AJs e escritórios de advocacia contratados. O exemplo mais singular é o da Usina Laginha, de União dos Palmares (AL), cujo dono era o falecido empresário João Lyra, que já foi o deputado federal mais rico do país. A empresa, que havia se submetido a recuperação judicial em 2008 e entrou em processo de falência em 2021 após a morte de Lyra, em meio a uma briga entre as herdeiras, as irmãs Thereza Collor de Mello e Maria de Lourdes Lyra. O processo segue na justiça sem desfecho. A dívida com cerca de 7,8 mil credores soma R$ 4 bilhões. A briga foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou a realização de uma nova assembleia de credores para a próxima semana.
São Paulo, estado com maior participação no setor sucroalcooleiro, acumula casos de RJs que se arrastam por anos e marcados por conflitos em IDPJs. É o caso do processo de falência da Usina Floralco, pertencente às massas falidas das empresas GAM Empreendimentos e Participações S.A. e Flórida Paulista Açúcar e Etanol S.A., que teve desdobramentos até no CNJ. Um dos réus de um IDPJ questionou no CNJ a atuação da AJ e a contratação de um escritório de advocacia. Foi até aberto processo administrativo para apurar a conduta dos magistrados que atuaram no caso, mas, em razão de acordo celebrado, as apurações não seguiram. Esse caso é um exemplo de como é importante que o CNJ passe a ter regulamento para tratar de contratações feitas em processos de falência e de RJ.
Entre outros casos importantes estão a Usina Albertina (Sertãozinho-SP), iniciada em 2008, e da Usina São Fernando (Dourados-MS), desde 2013. Ambas as empresas tiveram os processos de falência decretados pela Justiça, entre outros motivos, pela dificuldade imposta pelo tempo extensivo na recuperação judicial. Entraram para uma estatística comum no país, onde 106 das 446 usinas existentes estão com atividades paradas.