Rápido como o lendário empresário Howard Hughes a bordo de uma aeronave H-1: o mais recente filme de Martin Scorsese, O Aviador, é um magnífico espetáculo de cinema. Concorre a onze estatuetas do Oscar com boas chances de levá-las nas três principais categorias ? diretor, filme e ator, para Leonardo di Caprio. É um épico de crescimento e queda, amores e dor, de um fascinante personagem, o alucinado milionário que herdou do pai US$ 1 milhão aos 18 anos de idade e, ao morrer, em 1976, deixou como legado algo como US$ 360 milhões, segundo cálculos do fisco americano. Ele praticamente inventou duas indústrias nos Estados Unidos: a de Hollywood e a da aviação. Vítima de transtorno obsessivo compulsivo, cheio de manias, terminou a vida com fama de maluco. É esse drama, o da transformação do jovem brilhante e atraente em um homem torturado por suas próprias deficiências, que Scorsese pôs na tela. O diretor concentrou suas lentes, as mais inteligentes da atualidade, no período mais produtivo da vida de Hughes: de meados dos anos 1920 aos anos 1940, quando ele dirigiu Anjos do Inferno, a um custo de US$ 3,8 milhões, comprou a TWA e brigou com o FBI porque cismara em barrar o monopólio de uma outra companhia aérea, a PanAm. É um magnético personagem. Mas há outros Howard Hughes além daquele de Scorsese. Descobri-los, como numa versão ampliada e revista, é ver melhor os ótimos 170 minutos de O Aviador. Trata-se, enfim, de saber o que o longa, e põe longa nisso, não mostra. Trata-se de descobrir outro lado do romântico industrial.

? Hughes dividiu cama com as mais espetaculares beldades de Hollywood, como Katharine Hepburn e Ava Gardner, relações esmiuçadas em O Aviador. Depois, dividiria interesses com o governo dos Estados Unidos ? mesmo quando o FBI lhe perseguiu, por imposição de um senador amigo do arquiconcorrente, o presidente da PanAm. Nos anos 1940, e isso Scorsese deixa escapar, Hughes colaborou com a caça às bruxas imposta aos diretores de cinema tidos como comunistas ? embora não fossem. Resumo da ópera: de um lado ele era atacado pelo FBI e, do outro, dava as mãos para os agentes da CIA.

 ? Nos anos 70, depois de ser forçado a vender suas ações da TWA por US$ 546 milhões, ele reapareceu a bordo de uma outra empresa, a Hughes Airwest. Em 1972, a CIA o contratou para auxiliá-la numa missão secreta, o Projeto Jennifer. Tratava-se de recolher, no fundo do mar, informações deixadas por um submarino da União Soviética que afundara para sempre, no auge da Guerra Fria. Deu errado, e aparentemente nada de muito importante foi recuperado no oceano. O escândalo estourou apenas em 1975, quando ladrões roubaram papéis dos escritórios de Hughes. Nos anos 1970, os contratos de Hughes com a CIA, o que incluía auxílio em equipamentos de espionagem, rendiam a ele cerca de meio bilhão de dólares anuais.

? Um dos principais legados da fortuna do magnata é o Howard Hughes Medical Institute, de onde já saíram seis vencedores do Prêmio Nobel. Antes de morrer, ele transferiu o dinheiro de suas empresas para a instituição. Em 1985, a General Motors compraria o total das ações por US$ 5 bilhões. Foram dólares de uso nobre, benemerentes, de ajuda à pesquisa científica. Outras notas verdes, porém, ficaram para a história ? mas não estão no recorte de Scorsese ? pelo avesso. Recentes investigações ao redor do escândalo de Watergate especulam que a invasão dos escritórios do Partido Democrata, ordenada pelo presidente Richard Nixon, tinha um objetivo: resgatar papéis que comprovassem a troca de favores, em forma de propinas, de Hughes com os democratas. Sabe-se, hoje, que Larry O?Brien, um dos manda-chuvas do Partido Democrata, trabalhara como lobista de Hughes desde 1968. Irônico evento diante de um outro rolo: logo antes das eleições presidenciais de 1960, que levariam Kennedy ao poder, descobriu-se um esquisito empréstimo a fundo perdido de Hughes para o irmão de Richard Nixon, nunca pago, nunca visto.

São histórias que dariam um outro longa-metragem. Elas aparecem, em detalhes, no excelente livro O Aviador ? A vida secreta de Howard Hughes (Editora Record), que serviu de base para Scorsese. Para evitar o vôo da produção a uma duração improvável e insuportável, contudo, o diretor as deixou de lado. São instantes que ajudam a compor uma figura que vai muito além das esquisitices reveladas na tela. O personagem é maior que o filme.