24/07/2024 - 5:07
Há 70 anos, a baiana Martha Rocha perdeu o Miss Universo nos EUA. Mitos em torno da derrota reforçaram por décadas o imaginário e estereótipos sobre a ideia de um “padrão de beleza brasileiro”.Ela venceu o primeiro concurso oficial de Miss Brasil e, um mês depois, em 24 de julho de 1954, desfilou nos Estados Unidos como a favorita, nas casas de apostas, a levar o prêmio de Miss Universo. Maria Martha Hacker Rocha (1932-2020), conhecida simplesmente como Martha Rocha, amargaria o segundo lugar, perdendo para a americana Miriam Stevenson.
No imaginário popular, Rocha teria perdido “por duas polegadas a mais”. Virou até marchinha de carnaval: “Por duas polegadas a mais/ passaram a baiana pra trás/ […] e logo nos quadris/ […]/ Martha, Martha,/ ninguém tem o seu violão.”
Para especialistas, esta história internacional é muito simbólica para a própria ideia de “padrão de beleza da mulher brasileira”. “Reforça o imaginário da brasileira como uma mulher curvilínea, ‘gostosa’. Reforça o estereótipo que está no imaginário dos homens e, principalmente, daqueles do exterior”, analisa a historiadora Maíra Rosin, pesquisadora na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
O viés sociológico da questão ainda é maior quando, à luz dos dias atuais, sabe-se que foi tudo invenção de um jornalista – homem e brasileiro – que estava cobrindo o evento. A própria miss afirmou, em sua biografia, que ninguém tirou suas medidas nos Estados Unidos.
Uma análise é que essa ideia tenha sido um golpe para valorizar a autoestima nacional – como explica Rosin, algo na linha “perdemos, mas é porque nossas mulheres têm mais curvas”.
A psicóloga Jaqueline Gomes de Jesus, professora na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e no Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ), comenta que o jornalismo da época, ao usar a expressão “duas polegadas a mais”, estava reproduzindo “o estereótipo [da mulher brasileira], trazendo uma explicação que o público pudesse compreender, assimilar”. “O excesso, entre aspas, tem a ver com um modelo, dialoga com o padrão das magérrimas das passarelas”, diz ela.
Indústria da beleza
“A mulher brasileira nunca chega nesse padrão [de magreza] porque não faz parte da constituição dela. Martha Rocha foi criticada por estar fora desse padrão, mas não é um padrão que deriva da nossa sociedade”, argumenta a socióloga e cientista política Olivia Cristina Perez, professora na Universidade Federal do Piauí (UFPI). “É dos países colonizadores, que ditam o que é padrão de beleza para o resto do mundo e as mulheres mais diversas tentam se encaixar.”
Em outras palavras, uma ditadura da beleza. Perez entende que, no pós-colonialismo, segue havendo uma “relação de dominação” no padrão de beleza por parte dos países europeus e dos Estados Unidos, prevalecendo “a beleza do colonizador” como ideal a ser atingido. “Mulheres loiras e mais magras, com um biotipo bastante diferente do brasileiro”, argumenta a pesquisadora.
Nesse sentido, Perez vê os concursos de beleza como um outdoor para o consumo. “Ao impor para o resto do mundo [um padrão], ele gera muito dinheiro para a indústria da beleza. Quase nenhuma mulher se encaixa nesse padrão, então elas gastam com remédios, academias, procedimentos estéticos, cirurgias e salões de beleza”, pontua.
“Quem ganha com um padrão de beleza que não cabe na mulher brasileira? Com certeza não é a mulher, mas uma estrutura de dominação que faz com que ela se sinta frustrada, inferior e, portanto, continue sendo explorada e ainda gastando dinheiro para tentar se adequar”, argumenta a professora.
Rosin atenta para o fato de que até entidades de fomento ao turismo brasileiro por vezes apelam para imagens de mulheres curvilíneas usando biquinis minúsculos em praias paradisíacas. “Vendem a ideia de que a mulher [brasileira] é voluptuosa, sexual, mais do que as estrangeiras. Uma invenção que o mercado do turismo usou por muitos anos para vender a imagem do Brasil como terra das mulheres bonitas e gostosas”, comenta a historiadora.
Nas últimas décadas, o discurso vem mudando, reconhece Perez – méritos de movimentos sociais, de grupos feministas e de gestos inclusivos, mas também da mídia. “Cada vez mais mulheres pretas, por exemplo, têm sido chamadas para a propaganda, para espaços de cultura, ocupando [espaços midiáticos] e mostrando como a representatividade importa. Isso é uma mudança. Antes meninas pretas não se viam representadas”, afirma.
A pesquisadora defende que, no Brasil, a diversidade seja valorizada “como forma de expressão da beleza”.
Rosin concorda com esse ponto de vista. “Quando Martha Rocha perde alguma coisa e um homem diz que foi por duas polegadas a mais, ele está dizendo que aquela mulher não corresponde ao que deveria ser uma miss. Ou seja: estamos sempre correndo atrás de um padrão de beleza inatingível, irreal. Mais que irreal, surreal”, argumenta.
A psicóloga Jesus recorda que de Martha Rocha para cá, “o Brasil viveu várias mudanças de reposicionamentos globais” em meio ao “grande paradoxo que é uma população majoritariamente feminina e negra apagada desse processo”.
Misses, siliconadas e instagramáveis
O próprio estereótipo da beldade nacional também mudou – embora siga carregado de preconceitos, machismo e uma questionável prerrogativa de objetificação do corpo feminino. Se nos anos 1950 e 1960, o “padrão” eram as modelos magérrimas, em seguida as curvas ficaram mais evidentes, principalmente com a popularização das TVs com seus programas de auditório dominicais.
“Programas de televisão como o do Chacrinha [o apresentador Abelardo Barbosa de Medeiros (1917-1988)] exibiam mulheres voluptuosas como a fantástica Rita Cadillac, belíssima”, diz Rosin.
“Já nos anos 1990 e 2000, há mudanças com [personagens como] a Tiazinha e a Feiticeira. Entram as mulheres com silicone, cirurgias plásticas e tudo o mais”, completa a historiadora. “As mudanças vão acompanhando o mundo.”
Com o advento das redes sociais, a busca da beleza inclui poses ensaiadas e filtros digitais. “Espaços como o Instagram alteram o corpo e causam essa dismorfia. A gente vê e não se reconhece. O filtro transforma no que ‘deveria’ ser perfeito: nariz, olhos, boca, pele, enfim…”, diz Rosin.