07/01/2025 - 10:17
Jornal satírico “Charlie Hebdo” marca dez anos de atentado terrorista com concurso de cartuns #RirDeDeus. Especialista coloca Brasil entre países onde “cartunistas são com frequência atacados e ameaçados.”Como um cartunista deve fazer piada do Todo-Poderoso? Para homenagear as vítimas do atentado terrorista de 7 de janeiro 2015 a sua redação, o jornal satírico francês Charlie Hebdo propôs o concurso #RireDeDieu (Rir de Deus), cujos vencedores foram anunciados nesta terça-feira (07/01).
Cartunistas profissionais “que estão de saco cheio de viver numa sociedade regida por Deus e pela religião” foram convocados a “realizar a caricatura mais engraçada e maldosa de Deus”. A competição marcou o 10º aniversário do massacre por extremistas islâmicos, em Paris. Entre suas 12 vítimas estão oito membros da equipe editorial do jornal, inclusive os famosos Cabu, Charb e Wolinski.
O pretexto foram as repetidas charges sobre o profeta Maomé no Charlie Hebdo. Considerado um ataque à liberdade de imprensa e de expressão em geral, o crime suscitou manifestações de apoio em âmbito global, sob o slogan “Je suis Charlie” (Eu sou Charlie). Mas também críticas de que a publicação teria ido longe demais.
Uma década depois, certos observadores estão convencidos de que os humoristas e sua capacidade de provocar riso, mesmo que polêmico, são mais necessários do que nunca num momento em que a repressão à liberdade intelectual avança por todo o mundo.
Riso sob ameaça também no Brasil
“Estamos monitorando a situação dos cartunistas, onde quer que estejam no planeta, e tenho que dizer que a tendência é realmente ruim”, afirma o profissional Patrick Lamassoure, conhecido pelo pseudônimo KAK. “China, Rússia, Irã, Índia, Indonésia, Malásia e Brasil, entre outros: a maioria da população do mundo vive em países onde há censura à imprensa e cartunistas são com frequência atacados e ameaçados.”
Lamassoure é presidente da Cartooning for Peace, uma rede internacional de cartunistas profissionais “que usa o humor para lutar pelo respeito às culturas e liberdades”. A organização apoia incondicionalmente o concurso do Charlie Hebdo, mesmo que os resultados possam gerar ainda mais controvérsia.
Em seguida à Revolução Francesa, as charges políticas ganharam popularidade no país, ao expor os abusos de poder, e desde então se mantém uma tradição de sátira antirreligiosa. “Os cartuns representam a capacidade dos cidadãos de olhar nossos líderes no olho e dizer: ‘A gente está vendo o que vocês fazem e pode rir de vocês'”, resume Lamassoure.
Desde sua fundação, em 1970, Charlie Hebdo é notório por testar as fronteiras do que pode ou não ser dito publicamente. Segundo as leis francesas contra o discurso de ódio, é permitido zombar da religião, contanto que não se incite à violência, e as minorias permaneçam protegidas.
Lamassoure argumenta que, embora as sátiras possam contrariar alguns, só a lei decide o que é aceitável: “Porque qualquer coisa que eu diga ou faça vai aborrecer alguém – qualquer coisa. E o único limite tem que ser a lei, pois quanto a ela nós todos estamos de acordo.”
Onde é “longe demais”?
Charlie Hebdo não ridiculariza apenas o islamismo, mas também o cristianismo e o judaísmo. Antes mesmo do atentado de 2015, críticos acusavam alguns de seus cartuns de ultrapassar a fronteira para o fanatismo antirreligioso. Em 2011, pouco depois de o jornal publicar uma edição aos cuidados do “editor convidado profeta Maomé”, uma bomba incendiária danificou seu edifício.
Mas Lamassoure frisa que comentários provocadores constituem o quotidiano do cartunista político. “E se as pessoas ficam zangadas porque não gostam do que você diz, isso é bom, é liberdade de expressão – contanto que não se quebre nenhuma lei.”
Por outro lado há quem esteja disposto a infringir leis para expressar sua objeção à expressão artística do Charlie Hebdo – que é protegida legalmente. Por isso, a equipe de Paris precisa trabalhar em locais secretos, sob guarda rigorosa. Alguns de seus funcionários se encontram ainda sob proteção policial.
Segundo a rede Cartooning for Peace, a França é um dos últimos bastiões que mantêm a sátira viva: nenhum tópico, nem mesmo a religião, escapa. “Não sobraram tantos países assim onde se possa de fato rir do que se quiser e não ser ameaçado por isso”, afirma Lamassoure.
Ele sente uma “responsabilidade por manter essa chama viva”, já que a capacidade de rir de quem está no poder é “uma necessidade fundamental e uma liberdade muito importante”. E “mesmo quem critica os cartunistas precisa dessa liberdade”.