06/09/2000 - 7:00
O ritual público é conhecido: oito vezes ao ano, o todo-poderoso Alan Greenspan fecha-se em um dos salões de teto alto de um imponente edifício de granito no centro de Washington com outros 12 membros do Federal Reserve, o banco central dos Estados Unidos, para definir os juros americanos. O que pouca gente conhece, no entanto, é a liturgia privada desencadeada por Greenspan. Ela acontece minutos após a reunião, em Nova York, a alguns passos de Wall Street, dentro do edifício de 14 andares de pedra clara e ferro que ocupa um imenso quarteirão com entrada pela Liberty Street. No número 33 da rua estreita e escura fica o FED de Nova York, o centro nervoso das operações do maior banco central do planeta. A instituição é independente, assim como outros 11 bancos centrais espalhados nos principais Estados do país, mas é regida pelas decisões de Washington. A grande diferença é que ela é a única a colocar em prática as idéias de Greenspan, por meio da negociação diária de cerca de US$ 185 bilhões em títulos do Tesouro.
Ao mesmo tempo, por estar no principal centro financeiro do mundo, a instituição nova-iorquina reflete a pujança da economia que cresce a nove anos consecutivos. Aos números: o FED de Nova York foi responsável por dois terços dos US$ 1,4 trilhão em fundos transferidos eletronicamente pelos EUA em 1999, um número duas vezes maior que o registrado há 10 anos. Também no ano passado, o banco contabilizou dois terços dos US$ 500 bilhões em moeda que circularam nos EUA. ?A Nova Economia também permitiu que o FED pudesse aumentar a produtividade e operar mais rapidamente, com maiores volumes?, afirma Peter Bakstansky, vice-presidente e porta-voz do FED de Nova York. DINHEIRO entrou no banco e acompanhou durante um dia o cotidiano de parte dos 3,2 mil funcionários que trabalham silenciosamente e sob as lentes de dezenas de câmeras. Excetuando sua arquitetura externa inspirada na Renascença italiana, por dentro o lugar parece mais um dos edifícios vizinhos de Wall Street. Os analistas e economistas que subsidiam as decisões de Greenspan trabalham em minúsculos espaços divididos por baias cinzas ou salas pequenas, com kit mesa-computador. Normalmente, trabalham duro das oito da manhã até as cinco da tarde. Quando podem, descarregam a tensão na academia instalada no último andar do prédio.
Dois lugares no FED fogem desse padrão. No subsolo, a 27 metros abaixo da linha do chão, US$ 75 bilhões em barras de ouro de reservas de ou-tros países são armazenados em 122 compartimentos num salão protegido por uma gigantesca porta. O portão é fechado todas as noites e um relógio só permite sua abertura no dia seguinte ? o que poderia matar por asfixia qualquer pessoa que fosse trancada no interior do salão. Para alugar um espaço para um barra, o FED não cobra nada. O banco só é remunerado pelo transporte do metal. Como é de se imaginar, guardar US$ 75 bilhões em ouro requer reforço na segurança: todos os guardas têm a vida investigadas. Alguns deles substituíram seus pais na proteção do tesouro. Alarmes fecham todas as portas em alguns segundos.
Outro lugar fora dos padrões de escritório no FED de Nova York é o 10o andar. Lá, há grandes salas decoradas em estilo clássico e os corredores estão permeados de quadros cedidos pelo Metropolitan Museum. No final do grande corredor em madeira escura, em uma sala com quadros de ex-presidentes do FED de Nova York, que começa o jogo dos juros. Nessa sala acontece a cada terceira quinta-feira do mês a reunião que define previamente a posição do FED de Nova York sobre juros emprestados para os bancos ? chamada de discount rates ?, que também será defendida na reunião com Greenspan em Washington. O mesmo ritual se repete nos outros 11 bancos centrais de outros Estados. Mas o que é decidido em Wall Street acaba tendo peso definitivo. Afinal, o FED de Nova York é o maior em volume de operações e tem cadeira cativa na reunião em Washington.
No encontro do último dia 17, como ocorre tradicionalmente, a reunião começou depois das 14 horas, marcadas em um pequeno relógio que, desde os anos 20, cronometra, em cima de uma lareira, as reuniões do board nova-iorquino. Lá estavam o presidente do FED de Nova York, William McDonough, e outros nove membros, entre representantes dos bancos e da indústria. Um dos presentes era Peter Fisher, um advogado de 50 anos responsável pela operações do FED no mercado doméstico e internacional. Trata-se de uma peça-chave na condução da política monetária americana. Por ser o homem dos mercados do FED, cabe ao discretíssimo Fischer abrir ? com seu jeito direto e pontuado ? as famosas reuniões sobre juros em Washington e expor para Greenspan as últimas do mercado. Na assembléia do dia 17, por exemplo, ele ressaltou que a produtividade da indústria americana tem aumentado, segurando as pressões inflacionárias. No final da reunião, o voto dos conselheiros de Nova York em relação ao destino dos juros foi transcrito a mão e codificado por um secretário presente. Então, através de um sistema eletrônico, foi remetido direto para Washington.
Um andar abaixo da grande sala de reuniões é possível conferir como as idéias de Greenspan se transformam em ação. Ali, em um ambiente bem menos formal, fica a mesa de operações do FED. Funciona da seguinte forma: se o senhor Greenspan decidir por uma política de expansão de crédito, a mesa compra títulos do Tesouro americano (os treasuries) e o FED jorra dinheiro para o mercado. Caso contrário, o FED vende e tira dinheiro de circulação. No mesão, cercado de computadores, pouco menos de 100 pessoas negociam títulos do Tesouro americano ou outros papéis como aqueles derivados de hipotecas de americanos. Com os dois anos consecutivos de superávit nos EUA, a operação vem ganhando força. Como não quer influenciar muito nos mercados de títulos do governo, o FED está preparando um estudo para definir um outro papel que vai negociar em breve. Um fonte do banco disse a DINHEIRO que uma das possibilidades estudadas é a compra de títulos de empresas americanas, o que seria uma revolução nesse mercado. Enquanto isso não acontece, a turma da mesa de operações ? formada por jovens com média de idade de 28 anos ? arregaça as mangas. Para negociar os títulos, ela conta com a ajuda de 30 dealers, instituições autorizadas a negociar os papéis em nome do governo.
No último dia 29, a rotina começou por volta das 8 horas. No 9o andar, os analistas que acompanham o mercado levantaram oscilações do mercados. Enquanto isso, os operadores do FED discutiam com os dealers o humor dos investidores. Depois de receber informações das reservas para os dias seguintes dos colegas do FED em Washington, o plano para as próximas horas começava a ser montado na mesa de operações. Às 10 horas, mensagens sobre a operação foram enviadas para o dealers do banco. Meia hora depois, o resultado do leilão foi divulgado para o mercado. Enquanto isso, no 3o andar, 90 economistas observavam a economia nos EUA e no mundo por meio de gráficos, pesquisas, informações on-line e telefonemas para governos de outros países. Na semana passada, o alvo das atenções da turma do 3o andar era o índice de emprego nos EUA, que seria divulgado na sexta-feira, 1o de setembro.
O dado também era aguardado por Charles Scudel, um dos economistas mais importantes do FED, responsável há 12 anos pelas previsões da economia americana. Magro e tímido, Scudel desempenha esse papel em um sala pequena, que contém um pequena mesa de reuniões, uma mesa coberta de papéis e um pequeno ônibus de brinquedo amarelo e uma estante com um computador. O economista se nega a dizer o que vê no futuro, mas não esconde sua cautela sobre o que está acontecendo com a economia americana: crescimento acelerado, alto nível de emprego, poucos sinais de inflação. ?Temos que ser menos confiantes nas previsões de curto prazo. Os modelos teóricos continuam os mesmos, mas as forças que movem a economia são desconhecidas e surpreendentes?, diz Scudel, com olhar distante. Isso quer dizer que até Scudel, o homem das previsões de Greenspan, está tateando no escuro? ?É mais ou menos isso?, diz, com desconcertante sinceridade. ?Ainda não sabemos ao certo o que são essas forças que movem nossa economia.? É usando os dados de economistas como Scudel e avaliando as operações do mesão do 3o andar que o presidente do FED de Nova York, William McDonough, e seu executivo, Peter Fisher, deverão participar da próxima reunião no dia 3 de outubro em Washington. O que quer que aconteça, o certo é que o edifício 33 da Liberty Street vai continuar pulsando enquanto a economia americana ? e mundial ? tiver um único dólar em circulação.