Spoiler: toda vez que um ocupante de cargo público falar que algo está dentro da lei, “na legalidade”, há mutreta na narrativa. O mais recente deles foi Anderson Torres, o hoje detido ex-ministro bolsonarisa. Agora que o escopo militar mostrou seu lado da História — para surpresa total de absolutamente ninguém — restam ainda duas situaçoes decisivas. O rito sumário (pela gravidade dos atos) para os criminosos golpistas do dia 8 de janeiro e a identificação e detenção de seus financiadores com julgamento também em rito sumário. Vamos ter de acompanhar vigilantes esse desenrolar, visto que nosso aparato judicial + MP é dominado por bolsonaristas que nunca se acanharam, a despeito de seus papéis e rendimentos públicos, fora auxílios-mordomias, a usar redes sociais para manifestar sua cara antilulista e antipetista. Vamos ver se nossas instituições republicanas resistem novamente.

Quero tratar de 2023. Antes que janeiro passe. E para falar de Ano Novo é preciso ter claro que um governo só começa com o processo eleitoral devidamente enterrado. Nesse campo, independentemente do que pensar de Lula & Alckmin, a maioria dos brasileiros descartou a opção pela barbárie incivilizada – por mais que nas urnas tenha sido por pouco. Foi por 50,9% a 49,1%. De toda forma, por mais que o general-vice-serve-para-nada Hamilton Mourão chore que a disputa rolou no photochart, a corrida acabou. Aliás, metáfora do photochart é mais que apropriada, já que a ferramenta é usada para decidir prova entre cavalos (sorry, cavalos). O resultado, senhor Mourão, poderia ser até por apenas um voto que a frase continuaria a caber: a maioria de quem votou quis Lula & Alckmin. Seria irônico mesmo que desse empate, pois o petista venceria, já que é o mais velho entre os dois. Em suma, agora Inês é morta (ou fugitiva).

Ministra do Turismo recebeu apoio de outros acusados de chefiar milícias no Rio

Bora, então, começar novo governo? Não! Criando um enorme parênteses para o 8 de Janeiro, já na primeira semana tivemos as aberrações de sempre. Em terreno federal, Lula, Alckmin, Haddad, Tebet, petistas de todos os calibres, frenteamplistas, ministros de discursos lindos, mulheres presidentes de bancos, bem-intencionados em geral… Tá todo mundo calado. Omisso. Isentão. Fazendo papel de paisagem em relação às acusações amplamente consistentes de que a ministra do Turismo, Daniela Carneiro, tem vínculos com as milícias que substituem o Estado em boa parte do Rio de Janeiro.

E agora? Vai falar o que, senhor presidente? Que não abriu o LinkedIn da moça? Justamente o senhor, que escolheu pessoalmente cada nome para cada cargo. Pode tentar dizer que os críticos a seu governo não entendem a luta do bem contra o mal… Aposto um like no perfil da Daniela que esse será o discurso padrão do Lula III. E claro que vão dar jeito de encontrar qualquer traço de legalidade para justificar, com a mentira lavada de sempre, de que nada há de ilegal, e que se dane se for imoral. Na política, em especial na política brasileira, a legalidade quase sempre anda descolada da legitimidade. Ou, nas palavras definitivas de George Orwell, “a linguagem política é feita para que mentiras soem como verdades e o crime se torne respeitável”.

Mas tudo piora. Não se trata de um problema só na esfera federal. Evidentemente não. Em São Paulo, com seus 47 milhões de habitantes (22% do total do país) e PIB de R$ 2,5 trilhões (28%), o bolsonarista-militar-carioca Tarcísio de Freitas elegeu-se governador. Uma façanha forasteira, num estado que só teve governador nascido fora com Jânio Quadros, no fim dos anos 1950, ou nas lambanças getulistas. No apagar das luzes do governo do Rodrigo Garcia (brother apoiador de Tarcísio), um contrato milionário (R$ 76 milhões) foi assinado dias antes do Natal para compra de laptops à rede pública de ensino. A ladainha de sempre. Uma das firmas contempladas está a empresa do qual o novo secretário de Educação, Renato Feder, era coCEO por 15 anos. Resposta tarcisística: é legal. E igualmente imoral, omitiu-se de dizer.

Tudo na primeira semana do ano. Que a gravidade do 8 de Janeiro não camufle as outras gravidades de nossa política. A nação e o maior estado da nação já nascem com seus enroscos. E a chance é que os enroscos de Lula e Tarcísio pareçam irrelevantes perto da tentativa de golpe. São. Mas não são pouca coisa. Ou mexemos nisso ou 2023 só vai diferir de 2022 porque é ano ímpar. Feliz Ano Novo para quem, mesmo?