26/02/2003 - 7:00
Praia de Botafogo, 190. Nesse endereço, num edifício de 15 andares de frente para o morro do Pão de Açúcar, Rio de Janeiro, está fincada uma das mais respeitadas instituições do Brasil, a Fundação Getúlio Vargas, a FGV. De seus quadros de professores, já saíram 13 ministros da República, de Eugênio Gudin a Guido Mantega, e oito presidentes do Banco Central, de Carlos Langoni a Armínio Fraga. Encontra-se também nesse endereço, abrigado numa área de 700 m2 do sexto andar, a FGV Consulting. A estratégia da empresa consiste basicamente em utilizar a força da marca FGV para arrumar grandes contratos de consultoria ou ensino junto aos órgãos públicos, com dispensa de licitação através do instrumento legal do ?notório saber?. Nos últimos cinco anos, a FGV Consulting faturou
R$ 150 milhões de fontes tão diversas quanto o Ministério da Justiça, a Prefeitura de Curitiba e o Departamento de Aviação Civil. Há, contudo, uma segunda operação nesse negócio que está sendo investigada pelo Ministério Público Federal. O problema é que, depois de ganhar os contratos, a Consulting tem subcontratado empresas pertencentes a funcionários da FGV para fazer o serviço. Algumas dessas empresas são dos próprios diretores da Fundação.
DINHEIRO teve acesso com exclusividade a uma pilha de 832 páginas de documentos, relativos a 29 dos contratos da Consulting com órgãos públicos assinados entre 2001 e 2002 ? todos com dispensa de licitação. Somam exatos
R$ 25.848.500,00. Em 28 dessas 29 operações, o percentual de 77% do faturamento foi distribuído entre as empresas terceirizadas. Em números redondos, entraram nos cofres da FGV R$ 5.945.155,00, mas foram distribuídos R$ 19.903.345,00 para partes terceiras. ?Tudo indica que a FGV vem sendo usada como laranja para fraudar a necessidade de licitação?, diz o procurador da República Celso Antônio Três, de Brasília, que estudou a documentação. ?Isso é crime, e os responsáveis podem pegar de três a cinco anos de detenção por contrato.? O procurador Luís Cláudio Leivas, do Rio de Janeiro, que também investiga o caso, vai na mesma direção. ?Não se pode admitir o uso da marca da Fundação nos negócios de seus funcionários?, afirma. Dias atrás, o professor Carlos Ivan Simonsen, presidente da FGV, procurou Leivas para tentar se explicar. No fim, o procurador exigiu que uma auditoria independente seja feita imediatamente nos negócios da Consulting. ?A Fundação catalisa muitos contratos porque realmente tem notório saber?, disse Simonsen à DINHEIRO. ?Mas só usamos o artifício de subcontratar as empresas de nossos funcionários para não gerar novos encargos trabalhistas.?
Contratos de risco. O procedimento é polêmico e já foi
condenado até mesmo em documentos internos da FGV. Em
outubro passado o próprio Simonsen recebeu uma comunicação interna assinada pelo diretor-geral da instituição, José Affonso Fausto Barbosa, recomendando mudanças no modelo de subcontratação de empresas. Os motivos estão explícitos no documento: ?Grande risco representam as contratações que vêm sendo feitas, pela FGV, com empresas de empregados, que normalmente executam parte essencial do objeto que caberia à própria FGV executar?, escreve Barbosa. Sua conclusão: o modelo ?não é lícito e poderá gerar rescisão contratual, aplicação de sanções administrativas à Fundação, podendo ensejar questionamentos de natureza fiscal e trabalhista.? Barbosa assina quase todos os contratos de terceirização.
Desde a sua fundação, em 1944, a FGV vem fazendo trabalhos esporádicos de consultoria externa, mas essas operações só viraram um negócio lucrativo a partir de novembro de 1997, quando o então professor Luís Guilherme Schymura ? atual presidente da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) ? fundou a Consulting. ?Tenho orgulho de ter dado forma e estrutura à consultoria?, afirma Schymura. ?Jamais prostituímos o nome da instituição?, acrescenta (leia entrevista na página 30). Para receber sua remuneração pelos trabalhos na consultoria, Schymura fundou uma empresa, a LGS Engenharia Consultiva. Seus sócios eram os professores Renato Fraggelli Cardoso e Ricardo Simonsen, filho do falecido ex-ministro Mário Henrique Simonsen e primo do presidente da FGV. Schymura deixou a direção da Consulting em maio de 2002 para assumir a presidência da Anatel. Para seu lugar foi alçado o professor Afonso Arinos de Mello Franco Neto ? como o nome indica, neto de Afonso Arinos, um dos mais renomados juristas do País, autor da lei que pune o preconceito racial e principal relator da Constituição brasileira. Schymura também saiu da empresa, deixando Afonso Arinos no lugar. A LGS, por fim, alterou o nome para AR3. ?Só recebemos pela firma nos trabalhos que extrapolam as funções acadêmicas?, explica Arinos Neto. ?Trata-se de um esquema de remuneração por incentivos. É tudo transparente.?
A estatura dos sobrenomes envolvidos nas operações torna-as
ainda mais reluzentes. Pela estrutura da Consulting, toda vez que entra um contrato, cinco diretores da Fundação recebem 7% do faturamento, 1,4% para cada. Nos documentos obtidos por DINHEIRO, ora o grupo recebe na rubrica ?Cooperação Geral?, ora pela ?Coordenação? ? mas são sempre os mesmos cinco. O presidente Carlos Ivan Simonsen trata-os por ?Grupo Executivo?, mas eles preferem ?Comitê Diretivo?. Affonso Arinos é o calouro da turma, na vaga de Schymura. Também está dentro Antônio Carlos Pôrto Gonçalves, diretor do Instituto Brasileiro de Economia e sócio da firma CDI?Centro de Dados e Informação. Completam o time os professores Clóvis de Faro, diretor da Escola de Pós-Graduação em Economia, Bianor Cavalcanti, diretor da Escola Brasileira de Administração Pública e Irapuã Cavalcanti, representante da presidência no grupo. Faro, Bianor e Irapuã são sócios na empresa Capra, Wells, Scorcese Ltda., assim batizada em homenagem aos cineastas Frank Capra, Orson Wells e Martin Scorcese. Pelos cálculos do presidente Simonsen, os coordenadores receberam juntos cerca de R$ 10 milhões nos últimos cinco anos. Em 2002, faturaram R$ 400 mil para cada, na média de R$ 34 mil mensais. ?São valores insignificantes quando comparados com a remuneração dos diretores de institutos congêneres?, defende-se Clóvis de Faro.
Bons contratos. ?É um absurdo jurídico contratar alguém por notória especialização e em seguida subcontratar outro para executar o serviço?, diz Lucas Rocha Furtado, procurador-geral do Tribunal de Contas da União e autor do livro Curso de Licitações, recomendado pela FGV em seus cursos. ?Os órgãos públicos estão sendo lesados.? Um dos melhores contratos da Consulting foi a execução de 26 projetos, por R$ 8,5 milhões, para o Departamento Nacional de Trânsito. Vinte empresas foram subcontratadas. A Capra, dos diretores Faro, Bianor e Irapuã, recebeu R$ 358.192,80; já a LGS, de Schymura, e a CDI, de Gonçalves, ficaram com R$ 119.397,60 cada uma. Em outro bom contrato, com o Ministério da Integração Nacional, de R$ 6,6 milhões, o dinheiro foi quase todo para as empresas de oito funcionários da FGV. O valor de R$ 4,6 milhões foi rateado pelos técnicos que fizeram de fato o trabalho. Receberam através da Pacto (de César Campos), da VAT (de Eduardo Giraldez) e da BSB (de Luiz Perdigão). A cada um dos cinco membros do Comitê Diretivo coube R$ 92.400. A Consulting também vem fechando contratos de risco com as prefeituras das capitais. O negócio consiste em descobrir pagamentos indevidos de impostos em troca de 15% do que se pegar de volta, mais um adiantamento. Já fecharam contratos as Prefeituras de Salvador, Belo Horizonte e Curitiba. A Consulting terceirizou o trabalho para três empresas ? todas elas têm como sócio o professor Carlos Kerbes, da EPGE. ?Cada empresa fica com um investimento diferente?, explica Kerbes. ?Está tudo dentro da lei.?
Os negócios da Consulting vêm sendo respaldados por um parecer de 2001, encomendado ao jurista Octávio Galotti, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal. Porém, a comunicação interna assinada pelo diretor-geral Fausto Barbosa vai em outra direção. Segundo o documento, em caso de dispensa de licitação, a lei só admite a subcontratação de empresas na parte não essencial do contrato. ?Entretanto, a FGV vem subcontratando para a realização de quase totalidade desses serviços?, escreve o diretor-geral. ?As empresas, em sua maioria, pertencem a empregados da FGV e são constituídas para atender exclusivamente aos serviços contratados à FGV?, prossegue. O diretor-geral da FGV conclui que os responsáveis pelos contratos podem acabar enquadrados no crime de fraude à Lei das Licitações. ?É preeminente a necessidade de manter a FGV dentro dos princípios da legalidade, da moralidade e do formalismo?, escreve. Em tempo: o diretor-geral também recebeu dinheiro extra em pelo menos um contrato, com o Ministério do Planejamento, de R$ 298 mil. Coube a José Affonso R$ 40 mil pelo ?know-how da tecnologia do processo e coordenação?.
“RECEBI DINHEIRO LIMPO” |
Na terça-feira 18, Luís Guilherme Schymura recebeu DINHEIRO na sede da Anatel: DINHEIRO ? Foi o sr. quem organizou na Consulting o sistema de captação de contratos nos órgãos públicos? Só órgãos públicos são clientes? As consultorias privadas não teriam o direito de participar das concorrências? É lícito, nesse caso, subcontratar empresas dos próprios funcionários da FGV? Cada diretor da FGV receberia um percentual de todos os contratos, o que dá em média R$ 500 mil por ano… |