Em congresso em Doha, presidente da Fifa evitou falar em guerra na Ucrânia e afirmou que o Catar, denunciado por violações de direitos humanos, fará “a melhor Copa de todos os tempos”. Parece um mundo de faz de conta.O congresso da Fifa realizado em Doha no último fim de semana foi um espetáculo explícito de hipocrisia levado ao cubo, que beira o teatro do absurdo. O seu poderoso chefão Infantino fez cara de paisagem para a Rússia e enalteceu sobremaneira o Catar, organizador da Copa que “será uma benção para o mundo”.

Para quem acompanha de perto as maquinações dos donos do futebol, nenhuma surpresa. Por mais de uma década a parceria com o regime de Putin rendeu bilionários dividendos à Fifa, seja através da Gazprom, por muitos anos a principal patrocinadora da Fifa, seja através da Copa do Mundo realizada em 2018 na Rússia.

Durante seu falacioso discurso para enganar os incautos, Infantino evitou usar a palavra guerra para se referir ao que ocorre na Ucrânia – eufemisticamente chamando-a de conflito para não desagradar à delegação russa presente no evento. Guerra essa que está deixando cidades em ruínas, centenas de civis mortos e milhões de refugiados. Infantino minimizou a guerra na Ucrânia e em seguida louvou o Catar, que, em suas palavras, “vai fazer a melhor Copa do Mundo de todos os tempos”.

Rússia e Catar são parceiros desde 2010, quando foram escolhidos para sediar as copas de 2018 e 2022 num processo marcado por corrupção sistemática dos membros do Comitê Executivo da Fifa. Basta lembrar que dos 24 membros desse Comitê que deram a vitória à Rússia e ao Catar, sobraram apenas dois que não foram responsabilizados pela Justiça.

Violações de direitos humanos

Nesta semana, as ONGs Human Rights Watch e Anistia Internacional mais uma vez denunciaram o Catar por não cumprir, apesar de reiteradas promessas, a mais elementar observância de direitos humanos nem respeitar minimamente a diversidade, sem contar que pelo menos 6 mil trabalhadores estrangeiros teriam morrido sob condições análogas à escravidão desde que o Catar foi escolhido para sediar a Copa deste ano, muitos deles envolvidos na construção dos mais luxuosos estádios já erguidos para um Mundial.

Michael Page, diretor da Human Rights Watch, é enfático: “A Fifa escolheu o Catar para sediar a Copa do Mundo, portanto também tem responsabilidade pelo sofrimento imposto aos migrantes e suas famílias. Em vez de pressionar as autoridades do Catar para intervirem, encobriu a complacência e a escandalosa omissão dos autocratas que governam o país.”

O poderoso chefão evita a todo custo um debate sobre essa questão dos migrantes. Pelo contrário, Infantino desanda a elogiar o suposto progresso na questão dos direitos humanos e chamou o representante do governo local de “irmão”. É compreensível. Afinal, quem celebra contratos bilionários que vão abarrotar os cofres da Fifa em Zurique está acima de qualquer suspeita.

A única voz dissonante neste congresso de homens que dirigem o futebol mundial veio de uma mulher. Lise Klaveness, presidente da Federação Norueguesa, no seu discurso denunciou com todas as letras a situação dos direitos humanos no Catar, além de não hesitar em chamar pelo nome o banho de sangue que ocorre na Ucrânia: “Trata-se de uma guerra brutal.”

É sintomático que seu discurso tenha recebido apenas algumas palmas protocolares, e logo em seguida tenha havido a seguinte réplica do presidente da Federação de Honduras: “Aqui não devemos falar sobre política, mas apenas sobre futebol.”

“The show must go on”

Deve ser porque o mundo do futebol – essa bolha glamourosa dentro da qual vivem dirigentes, jogadores, treinadores, agentes e intermediários acumulando riquezas inimagináveis para um simples mortal – é um mundo à parte, alienado da realidade cotidiana da avassaladora maioria das pessoas, cujas vidas se resumem a uma dura luta diária pela sobrevivência.

O mundo do futebol se assemelha a um mundo de faz de conta onde tudo está bem.

Tem guerras? São apenas conflitos! Tem trabalho análogo à escravidão? Não vimos nenhum escravo! Tem discriminação? Faz parte da cultura local! Tem corrupção? Está tudo dominado! Tem desigualdade? É porque as pessoas não se esforçam! É um governo autocrático? Não falemos de política, porque o nosso negócio é futebol e the show must go on.

O Catar agradece pela parte que lhe toca no gigantesco bolão da Fifa.

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Gerd Wenzel começou no jornalismo esportivo em 1991 na TV Cultura de São Paulo, quando pela primeira vez foi exibida a Bundesliga no Brasil. Atuou nos canais ESPN como especialista em futebol alemão de 2002 a 2020, quando passou a comentar os jogos da Bundesliga para a OneFootball de Berlim. Semanalmente, às quintas, produz o Podcast “Bundesliga no Ar”. A coluna Halbzeit é publicada às terças-feiras.

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