Diz a tradição que o casal que troca um beijo diante da Ponte dos Suspiros, em Veneza, viverá um amor eterno. Isso tem levado milhões de amantes a se beijarem por ali todos os anos, antes ou depois do manjado passeio de gôndola. Mas, entre 2009 e 2011, um elemento novo se juntou a essa tradição. A moça, ao abrir os olhos depois do beijo, se deparava com um imenso outdoor da Bvlgari, que estampava uma atriz de Hollywood coberta de joias poderosas. Inevitável não pensar em pedir ao amado uma “prova” de amor daquelas com muitos quilates. Suspiros e diamantes à parte, o fato é que uma das construções mais importantes da história da Itália ficou por quase três anos “envelopada” de propaganda até a sua reinauguração, em dezembro de 2011. 

 

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Suspirando por quem?: enorme outdoor da Bvlgari na esquina do canal

que leva à Ponte dos Suspiros, em Veneza, em 2010

 

Foi a maneira que o prefeito da cidade, Giorgio Orsoni, encontrou para recompensar a marca por desembolsar € 2,8 milhões na reforma da ponte. Claro, Orsoni recebeu críticas na época, acusado de violação de patrimônio da humanidade. Em sua defesa, ele argumentava que a administração não poderia bancar o restauro e os venezianos – além dos 12 milhões de turistas que passam pela cidade todos os anos – estavam fadados a ver a ponte se desmanchar sobre o canal. Esse choque de realidade tem assustado os italianos na última década, com o agravamento da crise econômica na Europa. Orgulhosos de sua história, eles veem seus monumentos protegidos pela Unesco – são 47, o maior número deles num só país – se deteriorando, dia após dia.

 

No mesmo ritmo de corrosão, a verba federal para socorrê-los desacelerou-se. Desde o início da década, os gastos com a cultura caíram de € 450 milhões para € 254 milhões. O cenário permitiu a abertura de um novo nicho para as marcas de luxo, ávidas por manter o glamour do “made in Italy”. São os chamados investimentos de impacto, rios de dinheiro que saem dos cofres das maisons para causas sociais.Ainda em Veneza, a Diesel investirá € 5,5 milhões para recuperar a Ponte Rialto e a Prada reformou todo o Palazzo Ca’Corner Della Regina, transformando-o em sede de seu instituto cultural. Na capital, Roma, o CEO da Tod’s, Diego Della Valle (leia entrevista ao final da reportagem), assinou, em 2010, um cheque de € 25 milhões para a restauração completa do Coliseu. Já a Fendi é o caçula deste time: anunciou no final de janeiro passado que vai pagar € 2,5 milhões na reforma da Fontana di Trevi. 

 

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Mestre de obra: diretor criativo da Fendi, o estilista Karl Lagerfeld

acompanhará a reforma da Fontana di Trevi, este ano, em Roma

 

Vale lembrar que, em junho de 2012, parte de sua estrutura despencou na água. “Sem patrocínios, nós não conseguiremos gerir isso (a preservação) na Itália e, talvez, na Europa”, disse Giovanni Alemanno, prefeito da capital italiana, na solenidade que oficializou a parceria com a Fendi. O acordo prevê que a grife de bolsas e acessórios poderá usar os espaços dos tapumes durante os cerca de 20 meses previstos para a execução da obra e, depois de tudo pronto, ganhará uma placa discreta ao lado da fonte por mais três anos. Quem inspecionará a reforma, sob o ponto de vista artístico, será o estilista Karl Lagerfeld, diretor-criativo da marca. Ele reconheceu que, com a crise, os governos têm mesmo de buscar mais parcerias privadas como essas. “Eu acho que a cidade de Roma tem outras prioridades para gastar seu dinheiro”, disse.

 

BALANÇA Quem ganha e quem perde com tudo isso? Para Suzane Strehlau, professora de branding & marketing da ESPM, de São Paulo, ações como essas de empresas como Fendi, Tod’s, Prada e Bvlgari beneficiariam a todos. “A marca agrega valor quando se associa à arte, e se diferencia. A sociedade ganha de volta um lugar mais bem cuidado para visitar”, afirma ela. “E a consumidora da marca sente sua consciência mais leve por ver que a pequena fortuna que ela gasta com uma bolsa, por exemplo, está contribuindo para sua própria cidadania.” O risco aqui é o tiro sair pela culatra. Um remake exagerado pode descaracterizar a obra em si. “Tudo pode virar uma Disneylândia, artificial e sem autenticidade”, diz a professora da ESPM. 

 

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Oh sole mio: Renzo Rosso, da Diesel, quer associar sua marca de jeans com arte

 

Esse mesmo tipo de receio levou as autoridades romanas a retardar o início da reforma no Coliseu, patrocinada pela Tod’s. A presidente da Associação de Restauradores da Itália, Carla Tomasi, afirmou que a entidade foi deixada de lado e teme pela mão de obra não especializada contratada, que poderá desconfigurar o Coliseu. “Além de pôr em risco o monumento, isso suja a imagem do nosso trabalho e do país”, diz Carla. O edifício, templo de batalhas entre gladiadores e espetáculos teatrais construído em 80 a.C., ganhará nova bilheteria do lado de fora, câmeras de segurança, limpeza da fachada, colunas e galerias, e reabertura de algumas das salas subterrâneas.

 

A contrapartida da Tod’s será a exploração na venda dos bilhetes em um cartão postal visto por mais de dois milhões de pessoas anualmente. O tema é polêmico. A sociedade tende a apoiar essa nova “filantropia”. Afinal, não é todo mundo que tem € 25 milhões para tirar do bolso assim, sem uma garantia real de retorno”, diz Strehlau. Alheios ao risco, os investidores querem mais. Pesquisa de 2012 do banco Credit Suisse apontou para o aumento desses investimentos pelas empresas familiar – caso da Fendi, da Prada, da Tod’s. Elas miram os setores da educação e saúde nos mercados emergentes e cultura e artes nos países já desenvolvidos. Em ambos os casos, investe-se no bem-estar comum, de olho em toda e qualquer possibilidade de lucro posterior. Um tipo de maquiavelismo do bem.

 

 

“Absolutamente não”

 

Em entrevista à Dinheiro, CEO da Tod’s, Diego Della Valle nega que usará o Coliseu para propaganda da marca durante a obra.

 

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Dinheiro – A restauro já começou?

Diego Della Valle – Deve começar em pouquíssimos meses e terminará até 2015.

 

Dinheiro – A Tod’s pretende usar a área do Coliseu como espaço publicitário durante a obra?

Valle – Absolutamente não.

 

Dinheiro – E depois da reforma? Qual a chance de marca promover eventos dentro da arena?

Valle – Nenhuma chance. Essa reforma é um patrocínio, sem finalidade comercial.

 

Dinheiro – Qual a importância de um investimento com esse propósito para a imagem da marca?

Valle – Estamos orgulhosos de apoiar esse projeto por contribuir para melhorar a conservação de um dos símbolos da Itália e fortalecer nossa cultura no Exterior. 

 

Dinheiro – Que impacto na economia espera que essa ação tenha?

Valle – Eu espero que estimule o turismo para o nosso país, criando oportunidades de emprego no setor no qual nós, certamente, estamos disputando entre os líderes. Espero que isso também possa incentivar as empresas italianas e estrangeiras que cuidam dessas maravilhosas heranças artísticas e culturais. E que motive mais ações sem fins lucrativos para atrair a atenção dos jovens para essa beleza de monumento.