25/08/2025 - 14:10
Documentário mostra como três adeptos de teorias da conspiração se apegam ao negacionismo mesmo após verem a realidade do conflito com seus próprios olhos.As imagens mostram uma floresta de pinheiros perto de Izium, no leste da Ucrânia. Há valas comuns vazias por toda parte. Foi lá que soldados russos enterraram os corpos de centenas de civis que mataram na primavera europeia de 2022. As vítimas foram exumadas para exames médicos – algumas haviam sido brutalmente torturadas. Juntamente com o massacre de Bucha, esse é um dos crimes de guerra russos mais conhecidos e graves na Ucrânia.
Uma integrante do grupo, Petra, diz que a areia da floresta se parece com a de uma praia, o que ela descreve como uma sensação bizarra. O lugar tem um agradável cheiro de pinheiro, e a floresta é muito bonita, relata. Pouco depois, ela diz que o que se vê ali é falso. A câmera a acompanha enquanto ela caminha. De repente, ela diz: “Isso aqui é material excelente para a propaganda ucraniana alimentar o ódio aos russos. Parece algo saído de um manual do nacionalismo.”
A cena é do documentário A grande viagem patriótica, do cineasta tcheco Robin Kvapil. Ele conta a história de três compatriotas que adotam posições a favor da Rússia e contra a Ucrânia e que, a convite do diretor, viajam para a Ucrânia para serem confrontados com a realidade da guerra. Os três são filmados por Kvapil e sua equipe, mas também filmam e comentam eles mesmos o que veem. O filme apresenta as imagens dessa viagem sem comentá-las.
Os protagonistas não são fervorosos agitadores nem ativos propagandistas – de certa maneira, eles são o mainstream do antimainstream. Eles duvidam da maioria das notícias sobre a guerra da Rússia contra a Ucrânia, acreditam que se trata de uma guerra do Ocidente contra a Rússia e se sentem incomodados com os refugiados ucranianos em seu país.
Os três se opõem às políticas ambientais, às questões de gênero, aos refugiados e à União Europeia (UE), e acham o sistema político tcheco antidemocrático. Um deles se descreve, meio sério, meio irônico, como um “desolado” – termo usado pejorativamente na República Tcheca para descrever teóricos da conspiração.
Momento político crítico
Não foi por acaso que o documentário estreou em 21 de agosto na República Tcheca, aniversário da brutal invasão soviética da Tchecoslováquia em 1968 que pôs um fim à Primavera de Praga.
Mesmo antes do lançamento, o filme já estava nas manchetes e foi tema em todos os principais veículos de comunicação tchecos nas últimas semanas.
Nas redes sociais, as discussões são acaloradas. Kvapil, de 43 anos e natural da metrópole morávia de Brno, relatou à DW ter recebido muitos elogios, mas também críticas e inúmeras ameaças anônimas contra si e sua família.
O debate público em torno do filme se concentra em quão forte e perigosa é a influência russa na República Tcheca, na divisão da sociedade tcheca e se os “desolados” retratados no filme estão sendo injustamente expostos.
O lançamento do filme se dá num momento político crítico: um novo parlamento será eleito na República Tcheca no início de outubro, e o favorito é o partido populista de direita ANO, do controverso ex-premiê e bilionário Andrei Babis – que, embora não seja um apoiador declarado do presidente russo Vladimir Putin, defende posições pró-Rússia por um certo pragmatismo. Além disso, um partido de extrema direita e o Partido Comunista, ambos pró-Rússia, provavelmente terão representação no parlamento.
Presidente Pavel alerta
O presidente tcheco, o pró-europeu Petr Pavel, se mostrou alarmado com o clima pré-eleitoral e se manifestou numa longa entrevista ao site de notícias Aktualne. Ele disse que viaja pelo país com frequência e conversa com muitas pessoas, e que se surpreendeu com a quantidade de tchecos que avaliam negativamente o estado do país e as condições gerais de vida, contrariando bons indicadores de saúde e criminalidade.
Entre aqueles que parecem ver tudo de forma negativa na República Tcheca estão os três protagonistas do filme de Kvapil: Ivo, Nikola e Petra, dois homens e uma mulher, todos na faixa dos 50 e poucos anos.
Petra, filha de um oficial comunista, estudou teologia. Nikola é criador de gado. Ivo, o “desolado”, pode ser encontrado numa horta comunitária. Ele diz que não verifica se as notícias na internet são verdadeiras, mas se o conteúdo delas “parece certo” para ele.
Kvapil encontrou os três por meio de um anúncio de jornal em setembro de 2024. “Para um documentário, procuramos homens e mulheres que tenham dúvidas sobre as informações divulgadas pela grande mídia sobre a guerra na Ucrânia. A equipe de filmagem lhes dará a oportunidade de descobrir a verdade”, dizia o texto.
O cineasta não deixa dúvidas sobre suas próprias opiniões, pois logo no início do filme mostra imagens da invasão soviética da Tchecoslováquia em 1968, seguidas de imagens da invasão russa da Ucrânia em 2022. Depois disso, porém, ele se abstém completamente de opinar. Ele, sua equipe e os três protagonistas viajam num microônibus da República Tcheca para a cidade de Kharkiv, no leste da Ucrânia. No caminho, Petra canta o hino nacional russo.
Protagonista justifica estupro de crianças
Em Kharkiv, os três testemunham a ampla destruição na cidade, visitam um hospital bombardeado e o distrito de Saltivka, que foi tornado inabitável pelas bombas russas. Eles visitam crianças que estudam em bunkers e conversam com moradores. Mais tarde, vão até uma vila perto da frente de batalha e, de lá, para a floresta com valas comuns perto de Izium.
Ivo, Nikola e Petra comentam o que viram, e seus comentários vão do chocante ao abominável. Eles dizem que, numa guerra, mísseis podem erram o alvo, mas que certamente não era a intenção dos russos atingir civis ou doentes. Numa cena, Nikola “explica” o estupro de crianças por soldados russos atribuindo-o à “situação de emergência” deles – afinal, diz, assim são homens que querem ter algum prazer quando sabem que lhes restam apenas algumas horas de vida.
Às vezes a dúvida parece se infiltrar nas certezas dos protagonistas, por exemplo, quando um homem conta como perdeu a esposa, os filhos e todos os seus vizinhos num bombardeio. Petra o abraça.
Mas antes que os três encarem a realidade dos fatos, vem o desfecho deprimente: na viagem de volta, Ivo, Nikola e Petra dizem que não lutariam nem morreriam pela República Tcheca, pois não há nada no país pelo que valha a pena lutar, e que o propósito da viagem era “reeducá-los”, mas que eles vão se manter fiéis às suas opiniões.
Final sombrio
Na cena final do filme, Kvapil se senta com os três e diz: “Aprendi que existe um mundo onde o mal vence quando pessoas como Ivo, Nikola e Petra, depois de terem visto tudo, continuam espalhando a narrativa propagada por um regime monstruoso que comete genocídio. E se eles ganharem eleições no Ocidente livre e enfraquecerem o nosso sistema político, então alguns de nós poderão não estar mais aqui porque alguém vai simplesmente nos matar.”
Nikola concorda. Então ele diz: “Meu amigo, é assim que será.” Não está claro se ele está falando sério ou se é apenas um comentário sarcástico particularmente pérfido. Kvapil diz que perguntou, e Nikola teria dito que era sério.
É um final sombrio. Kvapil comenta isso no filme com uma conclusão pessoal: “Aprendi que sou eu quem precisa mudar. Tentar entender a todos e chegar a um acordo a qualquer preço pode ser a nossa maior fonte de fraqueza, o motivo pelo qual essas guerras são perdidas – primeiro a guerra da informação, depois a guerra real.”