Ele morreu em um duelo à margem do rio Hudson, em Nova Jersey, no ano de 1804. Somava 49 anos e carregava uma história de vida espetacular. Havia nascido bastardo e pobre numa ilhota do Caribe, chegou à Nova York colonial aos 17, meteu-se na revolução americana como membro da artilharia e, anos mais tarde, lançou as bases intelectuais da Constituição do seu país com uma série de 85 panfletos que entraram para a história como Federalist Papers. Em 1789, aos 34 anos, transformou-se no primeiro secretário do Tesouro dos Estados Unidos da América, embora não pertencesse à aristocracia rural de onde emergiram Thomas Jefferson e os demais fundadores da república americana. Agora, por causa de uma biografia monumental publicada nos EUA pelo historiador econômico Ron Chernow, percebe-se que esse auto-didata genial, subestimado pela história e vilipendiado por seus contemporâneos, foi o grande responsável pela criação do Estado americano moderno e pela estruturação da economia de mercado nos EUA. Seu nome? Alexander Hamilton. ?No que diz respeito às grandes transformações econômicas do período ? a revolução industrial, a expansão do comércio global, o crescimento dos bancos e a bolsa de valores ? Hamilton foi um profeta americano sem rival?, escreve Chernow. ?Ele não criou a economia de mercado americana, mas foi fundamental em estabelecer o ambiente cultural e jurídico no qual ela floresceu.?

 

Passados 200 anos da sua morte, Hamilton ainda reverbera ? e não só nos EUA. A instalação de Washington no lugar em que a capital americana se encontra hoje foi resultado de uma manobra dele. O racha que criou dois partidos a partir do consenso da revolução resultou de simpatias e antipatias em relação às suas decisões administrativas. Sua herança, que se espalha na diplomacia e na política, foi absolutamente crucial na economia. Foi ele quem criou o primeiro orçamento de governo e quem deu corpo ao primeiro sistema monetário do país. Foi ele quem primeiro defendeu nos Estados Unidos a utilidade da dívida pública como instrumento de defesa e prosperidade da nação. Nomeado secretário do Tesouro de George Washington, sua primeira medida, no dia seguinte à posse, foi tomar dois empréstimos e criar um imposto federal para saudá-los. Ao mesmo tempo, lançou-se numa feroz batalha política para unificar os débitos do país sob a tutela do governo federal, impedindo os estados de contrair novos empréstimos. Essas atitudes centralizadoras, que lhe garantiram a reputação insultuosa de monarquista, asseguraram que as colônias americanas que haviam emergido arruinadas da guerra de independência se estruturassem como país ? e, com o tempo, passassem a crescer em ritmo acelerado. Estima-se que na virada do século 18 para o 19 o Brasil tinha o dobro do PIB americano. Cem anos depois, o PIB brasileiro não passava de um décimo do PIB dos EUA. ?Hamilton deu estrutura de Estado a uma economia que só tinha mercado?, resume o escritor Jorge Caldeira, estudioso das economias coloniais americanas. ?As mudanças que ele implementou garantiram a prosperidade dos Estados Unidos no longo prazo.?

A decisão mais polêmica da gestão Hamilton no Tesouro, e aquela que maiores repercussões traria para o futuro, diz respeito aos bônus de guerra. Eles haviam sido emitidos pelos estados para financiar a expulsão dos ingleses e pouca gente achava que seriam resgatados. Seu valor de face havia caído a cêntimos do original e os detentores primários (em geral veteranos da guerra) haviam passado os papéis para especuladores. Quando Hamilton anunciou que a república honraria seus títulos ? percebendo a importância que isso teria para a credibilidade do país no futuro ? seu valor disparou. Imediatamente surgiu um clamor popular para que o governo, de algum modo, pagasse os títulos aos honrados detentores originais, não aos vis especuladores que deles se haviam apropriado na bacia das almas. Hamilton, que havia crescido atrás do balcão de uma companhia de comércio, percebeu que a Justiça retroativa era impraticável nesse caso ? e que infringir as regras de resgate dos bônus poderia arruinar as finanças da jovem república. Não cedeu às pressões, tornou-se inimigo de James Madison e entrou para a história como ?amigo dos especuladores?. Poucos lembram que os EUA passaram de párias no mercado de crédito a tomadores com taxas de 4% ao ano, a mesma cobrada das potências da época. ?A economia doméstica explodiu à medida que o capital estrangeiro fluiu para financiar o comércio e a agricultura?, escreve Chernow.

Nos tempos que correm, quando o mercado triunfou de forma universal e os financistas tornaram-se os príncipes do capitalismo, é fácil perceber a atração exercida por Hamilton. Enquanto os outros patriarcas da revolução americana foram congelados em um mausoléu de consenso, as idéias do fundador do banco central americano estão nas primeiras páginas dos jornais. A dívida pública americana, por exemplo, cujos papéis fornecem o cimento das finanças globais, transformou-se em um monstro ingovernável de US$ 7,188 trilhões, que cresce US$ 1,87 bilhão por dia e é sustentada à base de injeções de capital asiático. Mesmo no Brasil ouvem-se ecos dos argumentos hamiltonianos nos debates em torno das finanças do Estado. Quando os economistas da gestão FHC desdenhavam os alertas sobre o crescimento explosivo da dívida pública, o faziam com base na concepção de que o passivo do Estado é um instrumento de crescimento e atração de capital. Na gestão Lula, a equipe de economistas de Antônio Palocci empenha-se em reformular a visão histórica dos petistas de que as dívidas públicas poderiam simples-
mente ser repudiadas. Palocci e seus auxiliares são hamiltonianos a seu modo, embora Hamilton fosse um nacionalista fervoroso para quem as finanças eram um instrumento de independência do país,
não de subordinação do Estado a interesses privados.

Que a influência desse homem à frente do seu tempo não fosse percebida em toda a sua dimensão deve-se, em grande medida, à
sua morte prematura. Pai de oito filhos, advogado próspero, intelectual influente, Hamilton foi abatido estupidamente num duelo
à pistola com Aaron Burr, eleito presidente dos EUA em 1800. Ele apoiava seu inimigo Thomas Jefferson na disputa e teria acusado
Burr de fraude. Sua morte deixou o campo livre para que desafetos reescrevessem a história a seu modo. Duzentos anos depois,
graças à biografia de Chernow, Hamilton está de volta em toda
a sua estatura. Como revanche.

NO BRASIL ERA O CONTRÁRIO

No final do século 18, enquanto Hamilton criava com a centrali-
zação financeira as bases da prosperidade americana, o Brasil colônia vivia mergulhado no mais retrógrado absolutismo. A economia brasileira, embora o dobro da americana, era estruturada como uma máquina escravocrata de produzir impostos, não prosperidade. Faltavam meios de pagamento porque a coroa portuguesa levava todo o metal. Faltavam regras jurídicas para os negócios privados porque o Estado português não as reconhecia. Nos EUA havia mercado e faltava a ordenação do Estado. Aqui o Estado estruturado impedia que o mercado florescesse. Era evidente
que os EUA passariam na frente.

 

BIÓGRAFO DE TITÃS

Abiografia de Alexander Hamilton não é a primeira empreitada de sucesso de Ron Chernow. Jornalista, 55 anos, formado em literatura pela Universidade de Yale, ele já tem um longo currículo como escritor de best-sellers econômicos. Sua primeira obra, publicada em 1990, é The House of Morgan, que narra a história da dinastia responsável pelo famoso banco de investimento americano. Dono de um texto empolgante e de um olhar atento à psicologia de seus personagens, ele se debruçou em 1997 sobre a vida de John Rockefeller, o titã fundador da Standard. Premiadíssimo, o trabalho de Chernow ainda não pode ser encontrado nas livrarias brasileiras em português. Pior para os leitores.