Em fevereiro deste ano, a Sotheby?s leiloou a fotografia 99 Cent II, Diptych, do alemão Andreas Gursky, por incríveis 1,7 milhão de libras, o equivalente a US$ 3,4 milhões. A imagem mostra uma loja que vende produtos a 99 centavos e revela muito mais do que um amontoado de bugiganga: ela retrata um comportamento de consumo do mundo moderno. O preço alcançado no martelo, porém, diz muito mais. Ele ajuda a compreender uma mudança cultural no mercado de arte. Trata-se da era das fotografias cultuadas como telas pintadas por gênios como Picasso, Dalí, Renoir e companhia. Esse movimento, aos poucos, começa a desembarcar no Brasil. A prova concreta disso é a abertura do icontemporâneo, um circuito de fotografia que começa em 7 de agosto e termina no dia 11 do mesmo mês no shopping paulistano Iguatemi. Organizado pela SP Arte, o evento contará com a participação das principais galerias de arte do Brasil e terá 120 fotógrafos representados com obras cujos preços variarão de R$ 1,5 mil até R$ 30 mil. ?As fotografias estão ganhando destaque nos museus e galerias do mundo inteiro?, diz Fernanda Feitosa, organizadora do i-contemporâneo.

 

As fotografias estão ganhando destaque nos museus e galerias do mundo inteiro

 

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OS MESTRES DA MOSTRA: imagem produzida por Nicola Constantino (à esq.), outra de Christian Cravo (à dir.), retrato de autoria de Pierre Verger (abaixo, à esq.) e produção de Mário Cravo (abaixo)

 

?Além disso, alguns fotógrafos foram alçados a grandes mestres.? Cabe, diante de tal afirmação, uma pergunta.

Fotografia pode ser comparada a um óleo sobre tela?

 

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VARIEDADE: evento terá trabalhos de 120 artistas como o de Florência Rodrigues

 

O francês Henry Cartier-Bresson (1908-2004), um dos maiores fotógrafos do século XX, dizia, do alto de sua falsa modéstia, que ?a fotografia era apenas um instrumento mecânico, e o desenho, sim, era arte.? Sobre os retratos do cotidiano ostentados como telas, era ainda mais crítico. ?As fotos devem ser vistas em livros, não em paredes.? Era uma contradição. Afinal, Cartier- Bresson fazia com sua Leica o que outro Henri, de sobrenome Matisse (1869-1954), fazia com os pincéis. Os dois, cada um a seu modo, eram gênios e, sem sombra de dúvidas, artistas. Sempre que há esse tipo de comparação e cifras milionárias em jogo abre-se, portanto, caminho para longas discussões. Vamos a elas.

Um quadro pintado à mão é único. Por mais que se tente reproduzi-lo, nunca será igual. Com as fotos não acontece o mesmo. Por isso, o mercado criou regras para proteger os artistas e os compradores. ?Cada fotógrafo tira de cinco a quinze cópias da original?, diz Paulo Darzé, dono da galeria Paulo Darzé. Por contrato, elas têm o tamanho estipulado e não podem ser reproduzidas. ?Quando elas se esgotam o preço sobe.?

É o mesmo modelo de negócios usado no mercado de gravuras e esculturas, produzidas em série a partir de um único molde.

 

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US$ 3,4 MILHÕES é o valor da foto 99 Cent II, Diptych (à esq.), de Andreas Gursky

 

Nesse cenário, destacam-se duas escolas. Uma delas, o instante decisivo, cujo precursor foi Cartier-Bresson, ressalta a imagem capturada no momento exato, nem um segundo a mais, nem a menos. Esses retratos têm, no mercado, um valor histórico. Do outro lado, surge um novo movimento ainda sem nome. Trata-se da escola que usa os recursos digitais para retocar ou alterar as fotografias de modo a dar-lhes uma cara artística (leia quadro). No icontemporâneo, os quatro mil visitantes esperados poderão comprar fotografias de ambas as vertentes com grande potencial de valorização. Entre elas, há uma imagem produzida, em estúdio, por Mário Cravo, com 1 metro por 1 metro, avaliada em R$ 20 mil. ?É a quinta foto de quinze produzidas?, diz Darzé. ?Quando esgotarem-se as reproduções, o preço pode triplicar.? O mesmo acontece com imagens de outros artistas como Vik Muniz e Nicola Constantino. ?A fotografia passa por um momento muito mais criativo e pulsante do que a pintura?, diz Eder Chiodetto, curador do Clube de Fotografias do MAM. Essa é a grande aposta dos investidores. Tanto é que, na Inglaterra, o fundo de investimento WMG recentemente comprou 4 mil fotografias da galeria londrina Zelda Cheatle. A expectativa? Lucrar 50% dentro de três anos. Eis o retrato de um mercado no qual os ganhos são embolsados por quem tem visão.

 

O NOVO OLHAR DA FOTO DIGITAL

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FLÁVIA DELAROLI EM AZUL E PRETO: Exemplo da foto-arte, por Edu Lopes

 

O retrato-arte do século 21 deforma a luz para dar voz ao autor
LUCIANO SUASSUNA

 

O fotógrafo morreu. Viva o pintor de fotos. Esse poderia ser o resumo da revolução causada pela digitalização da fotografia. A partir de agora, cada imagem pode ser decupada em milhões de pontos, cada um deles servindo a dois propósitos: o de retratar a imagem, tal qual o olho humano a percebe, mas também o de deformá-lo, reconstituí- lo, transformá-lo em alguma coisa que antes só era possível pelo domínio do pincel como arte.

O fotógrafo pintor não é uma abstração nem alguém menos comprometido com a verdade original daquilo que captura. Ele está para as imagens do século XXI assim como os impressionistas estavam para a pintura do século XIX. Nascido como uma espécie de contraponto às imagens popularizadas pelas técnicas de impressão, o impressionismo era o predomínio da técnica sobre a realidade, sem que fosse uma fraude do que se vê. Com suas pinceladas de uma cor que parece outra, de traços retos que insinuam fazer curvas, de agressividade que se finge delicada, o impressionismo enganava o olhar, mas não a mente. Uma marina de Monet continuava sendo uma marina, um campo de girassol de Van Gogh não virava um campo de lavanda.

Essa é a moral da foto digital: ela deforma pontos de luz para dar força, impacto, dinamismo, velocidade, elegância ou o que mais o fotógrafo queira atribuir a sua mensagem. Na essência o espectador continua a receber o que o olhar humano viu pela objetiva, mas agora ele é impregnado também pela vontade do autor de conferir à imagem a sua leitura particular do mundo.