05/11/2003 - 8:00
Duas cenas ocorridas na semana passada resumem os impactos que a fusão entre o Bank of America e o Fleet Boston podem provocar no mercado brasileiro. Na terça-feira 28, um dia depois do anúncio da megafusão, o assunto dominou um encontro de banqueiros brasileiros em São Paulo. Na avaliação do grupo, o mais lógico é que, dentro de alguns meses, o Bank of America coloque uma placa de ?vende-se? nas operações brasileiras do Boston. Afinal, raciocinavam eles, o BofA, como é conhecido, dedicou-se em 2003 ao enxugamento e encerramento de suas atividades por aqui. Por que, então, voltaria atrás nessa decisão? No mesmo momento, em outro ponto da cidade, o presidente da subsidiária local do Boston, Geraldo Carbone, conversava com um amigo. Entusiasmado, descrevia as enormes oportunidades de crescimento descortinadas por um dos maiores negócios já fechados no mundo financeiro. Para Carbone, o Boston poderia se transformar na sólida base de desenvolvimento que o BofA sempre desejara e jamais tivera no Brasil. O que afastara os americanos daqui eram sucessivas jogadas malsucedidas, não uma rejeição ao País.
Pode-se entender a conversa dos banqueiros como uma análise fria e cartesiana de quem viu no negócio uma oportunidade para sua própria expansão. Já a avaliação de Carbone pode ser lida como a manifestação emocional de um executivo preocupado com a sobrevivência da instituição que dirige. Mas, neste momento, nenhum dos dois cenários pode ser descartado. Vendida para a opinião pública como uma fusão de gigantes, a operação é, na verdade, uma aquisição do Fleet Boston pelo Bank of America ? com impactos sobre o mercado brasileiro. Na operação, o BofA pagou US$ 47 bilhões em ações pelo banco sediado em Boston, na costa leste dos Estados Unidos. No mercado, ninguém duvida de que o controle será exercido pelo Bank of America. O cargo de principal executivo e comandante da nova instituição ficará com Kenneth Lewis, o atual CEO do BofA. Charles Gifford, presidente-executivo do Fleet, será o presidente do conselho de administração da nova instituição. Outro indicador é a composição da diretoria. De um total de 13 integrantes, oito virão do Bank of America e cinco, do Fleet.
Com o comando da nova instituição nas mãos do BofA, a operação brasileira ganhou um futuro incerto. O Bank of America não tem demonstrado qualquer simpatia pelo País. As diversas tentativas em se estabelecer aqui se constituíram em retumbantes fracassos. No esporte, perdeu dinheiro ao investir no clube carioca Vasco da Gama. O plano de ser um grande investidor institucional o levou a adquirir participações em companhias problemáticas, como a Gazeta Mercantil e o Grupo Ipiranga. Mas nada causou tanta dor de cabeça aos seus executivos como a aquisição do Banco Liberal. Até hoje, o BofA briga na Justiça americana com um dos sócios do Liberal, Antônio Carlos Lengruber, ex-presidente do Banco Central. A marcação
dos títulos públicos em maio do ano passado também trouxe uma coleção de embates judiciais e prejuízos de R$ 10 milhões. Por
isso, em março deste ano, o Bank of America vendeu sua carteira
de fundos para o HSBC.
Na época, Jeff Hershberger, porta-voz do banco, mostrava, em entrevista à DINHEIRO, toda sua irritação com o mercado brasileiro. ?Nosso objetivo é reduzir as operações em mercados emergentes. Ela é baseada em inúmeros fatores, incluindo a busca por menor exposição a riscos?, disse Hershberger. Hoje, o BofA mantém operações significativas apenas no México, mais pela proximidade com os EUA do que por um apetite pelo mercado latino-americano.
O que realmente o BofA queria era crescer no mercado americano ? e a incorporação do Fleet Boston se casa perfeitamente com esse objetivo. ?Conheço a forma de pensar dos dirigentes do BofA e não vejo por que eles mudariam de idéia agora?, diz um ex-executivo do Bank of America brasileiro. A estratégia nasceu na cabeça de Lewis, o homem forte do novo gigante, e foi por ele implementada. Seu prestígio junto aos acionistas é enorme. Desde que assumiu o cargo de principal executivo, em 2001, Lewis transformou o banco numa máquina de dinheiro. Nesse período, ele cortou 10 mil empregos e comandou oito trimestres consecutivos de lucros crescentes. Com isso, o preço das ações do banco baseado em Charlotte, na Carolina do Norte, subiu 49% durante sua gestão. Após a compra do Fleet Boston, o novo Bank of America passa a ser o terceiro maior banco do mundo, com ativos de US$ 966 bilhões. Na América, a instituição só fica atrás do Citigroup, cujos ativos somam mais de US$ 1,1 trilhão. Ao adquirir o Fleet Boston, o BofA se fortalece na região Nordeste dos Estados Unidos, sobretudo em Estados de economia forte como Nova York e Pensilvânia, onde sua presença era irrisória. Juntos, os dois bancos possuem 33 milhões de clientes, 5.669 agências e mais de 16.500 caixas automáticos. A carteira de depósitos soma US$ 552,1 bilhões, o equivalente a 9,8% de todo o mercado americano.
É justamente nesse ponto que se baseia a argumentação de Car-
bone. A legislação norte-americana proíbe que qualquer instituição tenha mais de 10% do volume total de depósitos dos EUA. Ou seja, o novo BofA já nasce com a cabeça batendo no teto. ?Não há outra saída a não ser crescer internacionalmente. E o Brasil é uma das grandes operações?, diz Carbone. No Brasil, não há tais restrições. O diretor de normas do Banco Central, Sérgio Darcy, adiantou à DINHEIRO que o BC não vê problemas na união. ?A fusão não vai gerar grandes impactos no Brasil. Ela não provoca concentração de mercado. Ela é positiva, porque quanto mais forte uma instituição financeira, melhor para o País.?
Tudo depende, portanto, da disposição dos dirigentes do BofA. ?O insucesso de operações passadas não é um limitador para apostas no futuro?, afirma Bruno Zaremba, analista de bancos do Pactual. Com essa argumentação na ponta da língua, Carbone iniciou uma espécie de catequização junto aos novos chefes. No domingo, por volta das 11 horas da noite, recebeu um telefonema em sua casa de Eugene McQuade, o executivo do Fleet responsável pela América Latina. Durante quinze minutos, McQuade explicou a Carbone os principais contornos da operação. No dia seguinte, logo cedo, antes que o anúncio fosse feito em Nova York, Carbone ligou para Paulo Cavalheiro, diretor de fiscalização do Banco Central, e o informou. Em seguida, convocou um grupo de jornalistas e concedeu uma entrevista coletiva por telefone. De domingo a quarta-feira já havia falado quatro vezes com o próprio McQuade e seu novo chefe, Terry Laughlin. Sua próxima tarefa é atrair um deles para uma visita, ainda em novembro, ao Brasil.
Segundo Carbone, a única definição até o momento é que seu time será responsável pelo novo BofA no País. ?Vamos administrar o banco no Brasil?, enfatizou. Há 60 anos no País, o BankBoston se transformou em banco de nicho, focado num público de alto poder aquisitivo e em serviços financeiros para grandes corporações. Também destaca-se com fundos diferenciados e uma boa carteira de financiamento imobiliário. Para Carbone, há casamento entre o que o BofA quer ser na vida e o que o Boston lhe oferece no Brasil. O BofA domina o mercado americano de serviços financeiros, como gerenciamento de caixa e financiamento de exportações. ?Somos líderes nessas atividades no Brasil?, diz Carbone.
Mas, com apenas 67 pontos de atendimento e 204 mil correntistas, ainda está longe do topo do setor bancário brasileiro. Junto com a operação local do BofA, o novo banco passa a ter R$ 21,02 bilhões em ativos, o que garante a décima terceira posição no ranking. ?A operação é rentável?, diz um executivo que prefere o anonimato. ?Mas o que os executivos do Bank of America acham de voltar?? ?Os gringos não acham nada do Brasil?, rebate Carbone. ?Eles me pagam para que eu conte para eles.? O executivo lembra que Charles Gifford será o presidente do conselho da nova instituição. Chadd, como Carbone o chama, já esteve várias vezes no Brasil e conhece o mercado local. ?Quando estava no Brasil, ele saía da sede do banco no centro de São Paulo, tomava um táxi e visitava os clientes pessoalmente?, recorda Carbone. Outro trunfo é a situação nos EUA. Com os juros muito baixos, de 1% ao ano, os bancos podem sair à busca de mercados mais rentáveis. ?Se o novo Bank of America decidir se mexer e colocar 10% de seus ativos no Brasil, muda toda a concentração de força do mercado?, diz Alberto Mathias, da ABM Consulting.
Carbone terá cerca de seis meses para convencer os chefes de que manter operações no Brasil é um bom negócio. Esse é o prazo para que o BofA faça a due dillegence no Fleet e a fusão seja analisada pelos órgãos de regulamentação americanos. ?A América Latina não será prioridade do banco?, assume Carbone. ?Mas o Brasil é um grande mercado.? Uma de suas tarefas será reconquistar os clientes que não guardam boas recordações do BofA. Na semana passada, Carbone havia marcado uma reunião com um correntista do BankBoston que, por ter operado antes com o BofA, não gostara nada da fusão. ?Vou sentar com ele para mostrar que o que passou, passou?, promete Carbone. ?Se for necessário, conversarei com cliente por cliente.? Enfim, terá muito trabalho pela frente.