31/01/2014 - 21:00
Pergunte a qualquer cidadão argentino e ele vai confirmar com a tradicional veemência portenha: embora tenha partido há quase 80 anos, Carlos Gardel (1890-1935) canta cada vez melhor. A devoção platina ao homem que, ao lado do letrista Alfredo Le Pera (1900-1935), popularizou o tango continua intocada. E essa não é a única faceta do apego argentino ao passado. As movimentações cambiais dos últimos dias mostram que a presidente Cristina Kirchner permanece convicta de que é possível manipular a economia como se fazia nos anos 1960 sem consequências danosas de longo prazo.
Em pouco mais de 24 horas, o governo proibiu a importação direta e a compra de dólares pelos cidadãos, para em seguida liberar essas medidas. Como resultado, o peso amargou uma desvalorização de mais de 10% em apenas um dia. A inspiração para Cristina vem do ex-presidente Fernando de La Rúa, antecessor de Néstor Kirchner, o falecido marido de Cristina. Para fazer frente à crise, de La Rúa, com ajuda do ministro da Economia Domingo Cavallo, orquestrou, em 1999, uma postergação de mais de dez anos de todos os pagamentos da dívida externa argentina. O “megacanje”, como ficou conhecido, foi a última de uma série de medidas desastradas tomadas por um país incapaz de gerar dólares para honrar seus compromissos internacionais.
O arriscado passo do tango financeiro baniu a Argentina dos mercados financeiros internacionais. Sem acesso a crédito e com pouca atratividade para investimentos externos, a Argentina vem recorrendo cada vez mais a medidas heterodoxas. A manipulação e a intervenção na economia zeraram a credibilidade do governo. A inflação e as contas públicas oficiais são questionadas e mesmo indicadores físicos, como a produção de grãos, têm sido postos em dúvida. Como se não bastasse, o investimento estrangeiro direto é tratado a pontapés. A petrolífera YPF, privatizada nos anos 1990 e comprada pela espanhola Repsol, foi nacionalizada em abril de 2012.
Nesse ambiente de incerteza, a solução dos poupadores é reunir cada peso excedente e convertê-lo em dólares, no colchão ou em um paraíso fiscal, temendo os volteios da Casa Rosada. A recuperação, como um sucessor de Gardel, ainda está por vir. Enquanto o Brasil trilhou um duro caminho para estabilizar sua moeda, sanear suas contas e fortalecer suas instituições e a qualidade de seus indicadores, a Argentina permanece na contramão da história, adotando paliativos para não atacar o desequilíbrio das contas públicas e a falta de competitividade de sua economia. Não dá para comparar. É fácil demonstrar o efeito das diferenças dos caminhos argentino e brasileiro. Em 1993, a bolsa de São Paulo e a bolsa de Buenos Aires eram equivalentes.
Naquele ano, ambas negociaram, ao todo, US$ 15 bilhões cada uma, com uma pequena diferença a favor do pregão argentino. Vinte anos depois, o movimento da bolsa argentina havia recuado para US$ 4 bilhões, ao passo que o pregão brasileiro movimentou US$ 762 bilhões, quase 200 vezes mais do que sua antiga concorrente. O Brasil olha para o futuro, apesar de alguns desleixos recentes da contabilidade criativa das contas públicas. A Argentina permanece ancorada ao passado, à improvisação econômica e à glória de Gardel e de Le Pera. Que, não custa lembrar, nem argentinos eram. Gardel nasceu em Toulouse, na França. Já o letrista era – ironia das ironias – paulistano da gema.